sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Nomadismo: uma reflexão sobre a figura do malandro



Em seu texto "Entre o passado e o futuro" a filosofa alemã, ARENDT (1972, p.41). afirmava "Meu pressuposto é que o pensamento emerge de incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter orientação."  É um desses  pequenos fragmentos da vida que este texto pretende colocar em discussão: a figura do Malandro e o papel que ele representa no imaginário brasileiro, em especial nas grandes metrópoles.
Destes elementos extraídos de nossas experiências temos que destacar também o papel dos símbolos  que possuem o sentido que os homens vão redescobrindo, sendo desvelados pela crítica e pela manifestação intelectual humana. RICOEUR (1978) argumenta que toda estrutura de significação tem um sentido direto, primeiro, literal que designa,  e por acréscimo, outro sentido indireto, secundário, figurado, que só pode ser aprendido através do primeiro.
 O imaginário brasileiro esta permeado desses dois símbolos tradicionais - o trabalhador “Mané”, “Caxias” e o contra ponto o Malandro, o “esperto”. Tantas vezes retratado, nas peças culturais populares, na música, na poesia, no teatro, na literatura, cinema e diversas outras manifestações sociais da memória coletiva, inclusive nas religiões de matriz afrodescendentes.
Percorrendo os muitos caminhos traçados pelo malandro na memória do povo brasileiro, principalmente no imaginário  daqueles trabalhadores de origem humilde e desfavorecidos socialmente, vamos encontra-lo como descrito,  poeticamente,  por Zé Keti na sua música “Diz que fui por ai”: “em qualquer esquina eu paro, em qualquer botequim eu entro, e seu houver motivo é mais um samba que faço...”.
Nos ritos africanos vamos encontra-lo na figura do seu “Zé”, de muitos nomes: Zé Pelintra, Zé Malandrinho, Seu Malandro, Malandro das Almas, Zé da Brilhantina, Malandro da Madrugada, Zé Malandro, Zé Pretinho, Zé da Navalha, Zé do Morro, Malandro Miguel, Malandro da Noite, e tantos outros. Apresenta-se também nas representações femininas da malandragem -  Maria Navalha é uma delas. Manifesta-se com características semelhantes aos malandros, dança, samba, bebe e fuma da mesma maneira. Apesar do aspecto forte e decidido, demonstram sempre muita feminilidade, são vaidosas, gostam de presentes bonitos, de flores principalmente vermelhas. Segundo a crença popular, recebeu a missão de voltar na terra para defendendo as mulheres que são traídas e mal amadas.
Examinando as cantigas, de tradição oral, entoada para estas entidades para a sua manifestação vemos como recorrentes as expressões de aversão ao trabalho “Trabalhar, trabalhar para quê? Se eu trabalhar eu vou morrer” - como neste “ponto” de Zé Pelintra. O uso de armas brancas: punhal, navalha, faca e o uso de golpes de capoeira, a bebida em excesso e a noite como substituta do dia, a rua em contraposição ao lar, todos elementos de profundo significado sociológicos.       
 Um tipo boêmio, errante, avesso as regras estabelecidas, amigo dos amigos, implacável com os desafetos, sempre disposto a cometer pequenos delitos para ganhar a vida em mais um dia que passa. Para o malandro não existe futuro, vive o seu cotidiano como se fosse tudo que possuísse. Não que não se vanglorie de  um que outro feito do passado, de um otário vencido ou de uma mulher conquistada. Aliás, a vida romântica para ele  é tão sem regras como seu código de conduta, bebe, chora, perdoa, mata e morre por seus amores.
Apresenta uma vestimenta particular, terno branco, camisa listrada, sapato de duas cores, chapéu e às vezes um canivete no cinto e uma navalha no bolso.
O antropólogo DaMatta (1981) coloca os tipos do malandro e do caxias (em alusão ao patrono do exercito brasileiro) em um continuum que vai da ordem a desordem ainda que com diversos matizes coloridos que vão se estabelecendo em uma complexidade que vai do mundo do carnaval a malandros e heróis. Em outra obra sua Da Matta (1997) assinala as diferenças entre a casa e a rua como espaços muito além dos físicos, conceitos muito mais amplos e repletos de significados. Afirma que  o conjunto de valores de um indivíduo varia radicalmente conforme o contexto em que ele se encontra: no ambiente de sua casa, o indivíduo tende se mais conservador, estático, comedido. Na rua, por outro lado, aceita que todos devem ser tratados de forma igual, de modo a manter a ordem que teme não existir na rua.
 O contraste entre os dois conceitos é claro: a casa é o espaço da família, do diálogo, da afetividade. A rua é o espaço da impessoalidade, do isolamento. A casa é o espaço da ordem enquanto a rua o reino da liberdade. A casa, sobretudo, fala de relações harmoniosas e quando “somos postos para fora de casa”, acabamos por relacionar a rua como expulsos para o mundo - regidos por regras e leis impessoais que estamos submetidos a cumprir. A rua e seus espaços são lugares do anonimato, da “consequência dos seus atos” e por isso, tendemos a relacioná-la a um espaço de risco.
Claro, temos  casos muito onde a casa invade a rua e vice-versa. Onde a ordem é substituída por outras lógicas  como é o caso do Carnaval, no Bumba Meu Boi, dos Festejos Juninos e tantas outras festas populares, onde o coletivo e o privado fazem trocas e formam novos comportamentos e atitudes.
MAFFESOLI (2001) vai contribui para a discussão da articulação da figura do malandro, do vagabundo, do errante ao contrapô-los a referência do homem fixo, preso a um determinado espaço. No contraditório  nomadismo—sedentarismo se expressa um paroxísmo, ganhando a forma de uma espécie de "enraizamento dinâmico". É um sinal do sentimento trágico da existência: nada se finda numa superação sintética, tudo transcorre em tensão, na incompletude permanente. E segundo esse  autor, "ainda será preciso que os dois polos dessa ambivalência possam se articular harmoniosamente". Tendo se tornado preponderante na modernidade, o sedentarismo, a territorialização individual (identidade) ou social (instituição) estariam dando lugar ao nomadismo e à errância. A pós-modernidade se caracterizaria assim, entre outras coisas, pela mobilidade e pelo nomadismo. Maffesoli acredita que a errância e o nomadismo, sob diversas variações, tornam-se um fato cada vez mais evidente e semeiam os elementos da contradição que farão nascer o novo, o inesperado e o coletivo.
E o nosso malandro? Errante, avesso a ordem, libertário, representação de muitos anseios humanos, não é esse profeta que anuncia uma nova era, de novos valores?  Não é na rua que pulsa a vida, que se manifesta a contradição e tenciona a construção de uma nova síntese?

 HIRÃ SOARES JUSTO

REFERENCIAS

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia de dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
HANNAH, Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
MAFFESOLI, Michel. Sobre o Nomadismo: vagabundagens pós-modernas,  Rio de Janeiro,Record, 2001.
RICOEUR, Paul. - O conflito das interpretações. 1978. Ed. Imago. Rio de Janeiro.
XANGO, C. Malandros. Acesso em 30 de 10 de 2012, disponível no blog da Casa de Caridade Pai Joaquim de Angola: http://casadecaridadepaiserafim.blogspot.com.br/2008/10/malandros-nesta-apostila-vamos-falar-de.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário