Em seu texto "Entre o
passado e o futuro" a filosofa alemã, ARENDT (1972, p.41). afirmava
"Meu pressuposto é que o pensamento emerge de incidentes da experiência
viva e a eles deve permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde pode
obter orientação." É um desses pequenos fragmentos da vida que este texto
pretende colocar em discussão: a figura do Malandro e o papel que ele
representa no imaginário brasileiro, em especial nas grandes metrópoles.
Destes elementos extraídos de
nossas experiências temos que destacar também o papel dos símbolos que possuem o sentido que os homens vão
redescobrindo, sendo desvelados pela crítica e pela manifestação intelectual
humana. RICOEUR (1978) argumenta que toda estrutura de significação tem um
sentido direto, primeiro, literal que designa, e por acréscimo, outro sentido indireto,
secundário, figurado, que só pode ser aprendido através do primeiro.
O imaginário brasileiro esta permeado desses
dois símbolos tradicionais - o trabalhador “Mané”, “Caxias” e o contra ponto o
Malandro, o “esperto”. Tantas vezes retratado, nas peças culturais populares, na
música, na poesia, no teatro, na literatura, cinema e diversas outras
manifestações sociais da memória coletiva, inclusive nas religiões de matriz
afrodescendentes.
Percorrendo os muitos caminhos
traçados pelo malandro na memória do povo brasileiro, principalmente no
imaginário daqueles trabalhadores de
origem humilde e desfavorecidos socialmente, vamos encontra-lo como descrito, poeticamente, por Zé Keti na sua música “Diz que fui por ai”:
“em qualquer esquina eu paro, em qualquer botequim eu entro, e seu houver
motivo é mais um samba que faço...”.
Nos ritos africanos vamos
encontra-lo na figura do seu “Zé”, de muitos nomes: Zé Pelintra, Zé
Malandrinho, Seu Malandro, Malandro das Almas, Zé da Brilhantina, Malandro da
Madrugada, Zé Malandro, Zé Pretinho, Zé da Navalha, Zé do Morro, Malandro
Miguel, Malandro da Noite, e tantos outros. Apresenta-se também nas representações
femininas da malandragem - Maria Navalha
é uma delas. Manifesta-se com características semelhantes aos malandros, dança,
samba, bebe e fuma da mesma maneira. Apesar do aspecto forte e decidido,
demonstram sempre muita feminilidade, são vaidosas, gostam de presentes
bonitos, de flores principalmente vermelhas. Segundo a crença popular, recebeu
a missão de voltar na terra para defendendo as mulheres que são traídas e mal
amadas.
Examinando as cantigas, de
tradição oral, entoada para estas entidades para a sua manifestação vemos como
recorrentes as expressões de aversão ao trabalho “Trabalhar, trabalhar para
quê? Se eu trabalhar eu vou morrer” - como neste “ponto” de Zé Pelintra. O uso
de armas brancas: punhal, navalha, faca e o uso de golpes de capoeira, a bebida
em excesso e a noite como substituta do dia, a rua em contraposição ao lar,
todos elementos de profundo significado sociológicos.
Um
tipo boêmio, errante, avesso as regras estabelecidas, amigo dos amigos,
implacável com os desafetos, sempre disposto a cometer pequenos delitos para
ganhar a vida em mais um dia que passa. Para o malandro não existe futuro, vive
o seu cotidiano como se fosse tudo que possuísse. Não que não se vanglorie
de um que outro feito do passado, de um
otário vencido ou de uma mulher conquistada. Aliás, a vida romântica para
ele é tão sem regras como seu código de
conduta, bebe, chora, perdoa, mata e morre por seus amores.
Apresenta uma vestimenta
particular, terno branco, camisa listrada, sapato de duas cores, chapéu e às
vezes um canivete no cinto e uma navalha no bolso.
O antropólogo DaMatta (1981)
coloca os tipos do malandro e do caxias (em alusão ao patrono do exercito
brasileiro) em um continuum que vai da ordem a desordem ainda que com diversos
matizes coloridos que vão se estabelecendo em uma complexidade que vai do mundo
do carnaval a malandros e heróis. Em outra obra sua Da Matta (1997) assinala as
diferenças entre a casa e a rua como espaços muito além dos físicos, conceitos
muito mais amplos e repletos de significados. Afirma que o conjunto de valores de um indivíduo varia
radicalmente conforme o contexto em que ele se encontra: no ambiente de sua
casa, o indivíduo tende se mais conservador, estático, comedido. Na rua, por
outro lado, aceita que todos devem ser tratados de forma igual, de modo a
manter a ordem que teme não existir na rua.
O contraste entre os dois conceitos é claro: a
casa é o espaço da família, do diálogo, da afetividade. A rua é o espaço da
impessoalidade, do isolamento. A casa é o espaço da ordem enquanto a rua o
reino da liberdade. A casa, sobretudo, fala de relações harmoniosas e quando
“somos postos para fora de casa”, acabamos por relacionar a rua como expulsos
para o mundo - regidos por regras e leis impessoais que estamos submetidos a
cumprir. A rua e seus espaços são lugares do anonimato, da “consequência dos
seus atos” e por isso, tendemos a relacioná-la a um espaço de risco.
Claro, temos casos muito onde a casa invade a rua e
vice-versa. Onde a ordem é substituída por outras lógicas como é o caso do Carnaval, no Bumba Meu Boi,
dos Festejos Juninos e tantas outras festas populares, onde o coletivo e o
privado fazem trocas e formam novos comportamentos e atitudes.
MAFFESOLI (2001) vai contribui
para a discussão da articulação da figura do malandro, do vagabundo, do errante
ao contrapô-los a referência do homem fixo, preso a um determinado espaço. No contraditório nomadismo—sedentarismo se expressa um paroxísmo,
ganhando a forma de uma espécie de "enraizamento dinâmico". É um sinal
do sentimento trágico da existência: nada se finda numa superação sintética,
tudo transcorre em tensão, na incompletude permanente. E segundo esse autor, "ainda será preciso que os dois polos
dessa ambivalência possam se articular harmoniosamente". Tendo se tornado
preponderante na modernidade, o sedentarismo, a territorialização individual
(identidade) ou social (instituição) estariam dando lugar ao nomadismo e à
errância. A pós-modernidade se caracterizaria assim, entre outras coisas, pela mobilidade
e pelo nomadismo. Maffesoli acredita que a errância e o nomadismo, sob diversas
variações, tornam-se um fato cada vez mais evidente e semeiam os elementos da
contradição que farão nascer o novo, o inesperado e o coletivo.
E o nosso malandro? Errante, avesso
a ordem, libertário, representação de muitos anseios humanos, não é esse
profeta que anuncia uma nova era, de novos valores? Não é na rua que pulsa a vida, que se
manifesta a contradição e tenciona a construção de uma nova síntese?
HIRÃ SOARES JUSTO
REFERENCIAS
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia de dilema
brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997.
HANNAH, Arendt. Entre
o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
MAFFESOLI, Michel. Sobre o Nomadismo: vagabundagens pós-modernas, Rio de Janeiro,Record, 2001.
RICOEUR, Paul. - O conflito das interpretações. 1978. Ed. Imago. Rio de Janeiro.
XANGO,
C. Malandros. Acesso em 30 de 10 de
2012, disponível no blog da Casa de Caridade Pai Joaquim de Angola: http://casadecaridadepaiserafim.blogspot.com.br/2008/10/malandros-nesta-apostila-vamos-falar-de.html
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