domingo, 30 de setembro de 2012

A serviço da criação


Sucesso de exposições em todo o Brasil destaca a profissionalização da figura do curador, responsável pelos detalhes das mostras e pela definição do olhar sobre a obra dos artistas

Por Sérgio Rodrigo Reis 

As artes plásticas viveram nos últimos anos no Brasil uma transformação. De setor destinado a iniciados, graças a decisões acertadas ele ganhou as massas. Na área cultural, atualmente, são as grandes exposições e eventos paralelos que conseguem atrair não só milhares de interessados como também muito dinheiro e a mídia. Parte da mudança se deve à atuação de um profissional: o curador. Se até há pouco tempo as exposições eram apenas depositárias de obras sem tanta lógica, hoje a maioria delas aposta em estratégias bem definidas. Em busca de repercussão, as instituições têm investido em propostas instigantes, seleções curiosas de obras, reflexões estéticas provocativas e inéditas. O inverso também se observa. Quem tem optado por projetos herméticos, sem pensar em meios eficazes de comunicação, tem colhido repercussão bem tímida.

A mostra Caravaggio e seus seguidores serve de exemplo. Foi a mais visitada na história da Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, atingindo a marca de 86 mil pessoas e provocando filas enormes. A repercussão em São Paulo tem superado as expectativas: a mostra, até hoje no Masp, já foi visitada por 160 mil pessoas, que pagaram para ver sete obras do mestre barroco e outras 15 telas de artistas influenciados por ele. Como trazê-las da Itália exige um esforço descomunal e, atualmente, só existem 62 quadros conhecidos do artista, a opção foi “potencializar” cada uma das telas, instigando o espectador com os mistérios, as curiosidades e as peculiaridades da mente conturbada de Caravaggio (1571-1610). Deu certo. 

O crítico de arte e museólogo Fábio Magalhães, responsável no Brasil pela curadoria do projeto, tem explicação para o sucesso. “Por meio de um grupo de obras tentamos dar a dimensão do artista tornando mais abrangente e compreensível sua produção.” Segundo ele, não existem fórmulas prontas para exposições. “É sempre um desafio. Cada curadoria é uma problemática.” No caso de Caravaggio e seus seguidores, um dos trunfos foi Medusa Murtola, uma famosa tela que era até pouco tempo atrás atribuída ao mestre e, recentemente, foi identificada como verdadeira. Em sua primeira exibição fora da Itália ela causou intensa curiosidade. A comoção foi tanta no Brasil que, a pedido da presidente Dilma Rousseff, cinco telas do artista serão expostas entre 6 e 14 de outubro no Palácio do Planalto, em Brasília, e poderão ser visitadas em grupos de 30 pessoas. Em seguida, a mostra completa vai para a Argentina, onde será exibida no Museu Nacional de Bellas Artes, o Malba, a partir do dia 23. 

Com várias exposições no currículo, o paulista Fábio Magalhães é defensor de certa invisibilidade da figura do curador nos projetos. Para ele, não só pega mal como soa pretensioso as mostras que, em vez de ressaltar o artista e as obras, colocam em primeiro plano um certo “conceito curatorial”. “Quando o olhar do curador quer se posicionar acima daquilo que está representando, fica complicado. Geralmente é mais comum em bienais e em exposições de arte contemporânea. Não raras vezes, a visão do profissional se coloca como mais importante do que a dos artistas. Não trabalho assim, mas vejo com frequência esses projetos.” Os exemplos de falta de profissionalismo são mais presentes do que se possa imaginar. 

O que mais incomoda o pernambucano Moacir dos Anjos em projetos de exposições é quando o curador parte de uma questão preconcebida e, em seguida, sai em busca de obras apenas para “ilustrar” sua tese. Por outro lado, ele, que já foi até responsável pela Bienal de São Paulo, enumera os atributos de um bom profissional. “Antes de tudo, deveriam ter disponibilidade para tentar entender as criações, enxergando aquilo que trazem intrínsecas, e não tentar impor alguma ideia ou tema. O curador é, ou deveria ser, antes de tudo, um investigador atento às falas emitidas ou formuladas pelas ações, gestos ou trabalhos daquilo que entendemos como obra de arte.” Embora existam exemplos ruins em todo o país, nos últimos anos a tendência tem sido de amadurecimento dos profissionais, a maioria, autodidatas ou com outras formações. 

Música e fotografia 

O pianista Luiz Gustavo morava em Paris, quando, depois de tocar num festival em homenagem ao escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre, resolveu visitar a exposição fotográfica do lituano Antanas Sutkus. O impacto foi tão grande que, em viagem à Lituânia, resolveu procurá-lo. A empatia foi imediata. A admiração cresceu, até que ele resolveu propor uma parceria, com uma exposição na Galeria de Fotografia Chateau d'Eau, em Toulouse. Até então nunca havia realizado nada na área. 

“Foi um desafio. Passei algumas noites sem dormir, pois tinha uma grande responsabilidade, que poderia dar certo ou não. Ainda bem que a repercussão foi positiva. Tentei propor uma seleção intuitiva das imagens, mas que também levasse em conta um trabalho de pesquisa.” O universo era vasto. Antanas fotografa desde os 17 anos o mesmo tema: a realidade dos povos simples da União Soviética. A parceria continua dando frutos. Ele acaba de abrir mostra de trabalhos do fotógrafo no Centro de Arte Contemporânea e Fotografia de Belo Horizonte. 

Arte em primeiro lugar

O artista plástico André Severo, que atualmente integra a equipe de curadores da 30ª Bienal de São Paulo, é outro que chegou por acaso ao posto. Há dois anos, em Porto Alegre, onde vive, conheceu na Bienal do Mercosul o curador venezuelano Luís Peres Oramas. As preocupações e inquietações dos dois eram parecidas e, depois de trocarem publicações, iniciaram uma parceria. Quando surgiu o convite a Oramas para propor a temática da 30ª Bienal, lembrou-se de André. Aos 38 anos, o artista tem uma visão lúcida do papel de um curador num projeto deste porte. “É quase como se fosse um diretor de cinema ou de ópera. Não se faz nada sozinho e não é possível ter uma visão única. Quando isso ocorre, em geral se dá nas piores curadorias.” 

Quando surgiu a proposta de pensar na ideia do discurso que iria nortear a Bienal de São Paulo, a equipe curatorial do projeto adotou algumas estratégias. “Visitamos artistas e conversamos com cada um deles . Tivemos dois anos de prazo”, diz André. A tentativa sempre foi, segundo ele, para que o pensamento não se sobrepusesse às propostas dos artistas. “Isso poderia destruir a potência maior do trabalho de cada um individualmente”, explica. Para ressaltar ainda mais a opção, a expografia foi pensada tentando estabelecer lugares para cada um dos convidados desenvolver sua proposta. “A bienal dá a chance o tempo todo ao espectador de desmontar o discurso conceitual.” Ao propor um projeto que coloca em primeiro plano a criação estética e as possibilidades de diálogo com o público, a bienal contribui para discutir a função do curador.
Acesso em 30/09/12.

O Mercosul e os lugares de memória dos crimes das ditaduras

Após as graves violações de direitos humanos cometidos pelas ditaduras do Cone Sul, a implementação de políticas públicas de lugares de memória representa um compromisso ineludível dos Estados democráticos da região. 

Por Victor Abramovich*, em Carta Maior


Isso porque esses lugares são fundamentais para oferecer uma reparação simbólica às vítimas, contribuir com a construção da memória social do que aconteceu, e tomar medidas para julgar crimes contra a humanidade investigados nos processos judiciais em curso em vários países da região.

Nos últimos anos, tem-se criado em nossos países numerosos sítios de memória em lugares onde cometeram-se graves violações aos direitos humanos, onde essas violações foram resistidas ou enfrentadas, ou que por algum motivo as vítimas, suas famílias ou as comunidades associam com esses eventos, e que são usados para recuperar, repensar e transmitir processos traumáticos, e para homenagear e compensar as vítimas.

Estes lugares têm adquirido um valor pedagógico destacado ao ajudarem a transmitir informação e conhecimento às novas gerações, e para ativar discussões públicas sobre as condições sociais e políticas que favoreceram esses processos históricos. Nesse sentido, foram sinalizados e, até mesmo, criados especialmente lugares de memória em diversas guanições militares e policiais onde funcionaram centros clandestinos de detenção, nos quais foram cometidas privações da liberdade sem o proceso legal, torturas, desaparecimentos e execuções sumárias de líderes políticos ou ativistas sociais. Em muitos casos, além disso, a implementação desses espaços faz parte de projetos que procuram estabelecer distinções, pontes e relações entre o pasado autoritário e os problemas de direitos humanos ainda pendentes em nossas democracias, como a violência policial e tortura nas prisões.

Na verdade, até alguns anos atrás, a preservação dessas propriedades não foi entendida como uma responsabilidade do Estado e objetivo das políticas públicas governamentais. Felizmente, hoje o contexto político regional e institucional é bastante diferente.

Na Argentina, por exemplo, o ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) procurou demolir a ESMA, o maior centro clandestino de detenção e emblemático da ditadura, na sua estratégia para "virar a página". Em 1998, um grupo de familiares de vítimas obteve uma medida judicial que obrigou a preservar o lugar como parte da herança cultural dos argentinos. Em 2004, o ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) tomou a decisão histórica de transformar o local no Espaço da Memória e Promoção dos Direitos Humanos, expulsando as unidades da Armada que funcionabam no espaço . Como mais um passo na institucionalização dessas iniciativas, em 2011, foi sancionada a Lei 26.691, chamada "Preservação, Sinalização e Difusão de Lugares de Memória do Terrorismo de Estado", que passou à frente do governo nacional as políticas reitoras nesta área.

No Paraguai, após o relatório da Comissão de Verdade e Justiça, que documentou violações de direitos humanos cometidas pela ditadura de Stroessner, o governo do presidente Fernando Lugo promoveu a criação de uma "Rede de Sítios Históricos e de Consciência", a fim de preservar arquivos e lugares de valor histórico, obrigando em alguns casos a desocupar as unidades policiais e militares para transformá-las em museu. Um exemplo desta política é a criação de um lugar de memória onde funcionou o Departamento de Investigação da Polícia Capital, usado como prisão clandestina e centro de tortura de presos políticos durante a ditadura.

No Uruguai, varios juízes tomaram medidas de asseguramento em prédios militares, o que na prática significava a proibição de mudar sua estrutura para salvaguardar o seu valor probatório no âmbito dos processos judiciais relativos aos crimes da ditadura. Recentemente, o governo nacional destinou a propriedade onde funcionou o Serviço de Informação de Defesa (SID) que foi um centro clandestino de detenção, para o novo Instituto Nacional de Direitos Humanos, e colocou uma placa em memória das pessoas detidas ilegalmente naquele lugar, como Maria Claudia Iruretagoyena e sua filha Macarena Gelman.

No Brasil, funciona desde 2009 o Memorial da Resistência de São Paulo, e em 2012 a Secretaria de Direitos Humanos propôs ao Mercosul a construção de um memorial do Plano Condor em Porto Alegre, entre outras iniciativas. A Comissão de Anistia é um membro da Rede Latino-Americana de Lugares de Consciência, que reúne representantes de 29 instituições de 11 países da região. Cabe destacar, também, a criação recente por parte da presidente Dilma Rousseff da Comissão da Verdade, a qual oferece um novo impulso para o problema, reforçando a sua estrutura institucional e colocando o Brasil em linha com as ações tomadas pelo seus pares do Mercosul.

Neste contexto regional, no dia 6 de setembro, em Porto Alegre, a Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos e Chancelarias do Mercosul (RAADDHH) aprovou os "Princípios fundamentais para as políticas públicas de lugares de memória". Este é um documento elaborado pelo Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH) que reafirma o dever dos Estados de criar e gerenciar lugares de memória e, em particular, de preservar os sítios onde se cometeram graves violações aos direitos humanos.

Este instrumento contém 29 princípios orientadores das políticas governamentais nesta área, que são derivados da obrigação dos Estados de dispor mecanismos eficazes para investigar, julgar e punir os responsáveis por graves violações dos direitos humanos, e para garantir os direito à verdade, memória e reparação para as vítimas, suas famílias e da sociedade em conjunto.

Alguns destes princípios estabelecem níveis mínimos que devem ser levados em conta em qualquer política públicas sobre lugares - sejam iniciativas de agências governamentais ou instituições sociais, ou de parentes das vítimas -; outros são destinados a explicitar obrigações específicas dos Estados. Em particular, propõem pautas para a preservação dos lugares, com destaque no dever de adotar as medidas judicais, legais ou administrativas para garantir a segurança física desses lugares. 

Também estipulam critérios para a identificação, sinalização e determinação do conteúdo dos lugares de memória, entre eles, a necessidade de garantir a ampla participação de vítimas, familiares, comunidades locais e diferentes setores da sociedade. Finalmente, se apresentam os princípios para o desenho institucional dos lugares de memória que, por exemplo, destacam a obrigação de contar com marcos legais adequados, assim também como a conformação de equipes interdisciplinares, mecanismos de transparência e participação social em sua gestão.

A aprovação destes princípios é apoiado pela meta regional de recuperar ao mesmo tempo que construir memórias do passado comuns dos países do Mercosul, ligados à coordenação repressiva das ditaduras no Cone Sul e da chamada Operação Condor. Esta linha também se inscreve na recente criação de um grupo técnico intergovernamental para melhorar a cooperação jurídica e administrativa relacionada com as investigações da Operação Condor, e sistematizar, relevar e identificar e desclasificar, de maneira coordenada, os principais arquivos públicos e sociais que existem sobre estes fatos. 

Vale lembrar que a Operação Condor foi uma aliança repressiva formada nos anos setenta pelos serviços de inteligência dos países da América do Sul sob ditaduras militares, a fim de combater aqueles que consideravam "subversivos" termo amplo que permitiu incluir uma multiplicidade de sujeitos definidos como inimigos ideológicos. Através de um documento fundador, foram estabelecidas as linhas de ação que levaram à criação de estruturas militares clandestinas, lideradas pela cúpula castrense mas operando com relativa autonomia, e, ao mesmo tempo, a implementação de um sistema paralelo de prisões clandestinas e centros de tortura a fim de receber aos prisioneiros estrangeiros detidos no contexto desta operação.

Através de experiências sociais, governamentais e regionais de preservação e gestão dos lugares de memória, e com a adoção desses princípios, os governos do Mercosul contribuem para aprofundar o processo de integração regional. Isto é assim porque a recuperação e construção de memórias e identidades comuns sobre o passado ditatorial, as políticas destinadas a garantir a não repetição das graves violações dos direitos humanos, e a fixação gradual de um piso comum de direitos e de cidadania, permitem hoje conceber o Mercosul não apenas como um bloco econômico, ou uma aliança de negócios, mas também como uma comunidade política emergente.

* Victor Abramovich é o Secretário Executivo do Instituto de Políticas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH). O IPPDH foi criado em 2009 (Decisão n º 14/09 do Conselho de Mercado Comum do Mercosul) como uma instância de cooperação técnica, investigação aplicada e coordenação das políticas públicas em direitos humanos nos países do bloco regional. Sua sede permanente está na cidade de Buenos Aires, Argentina, e de acordo com o acordo assinado entre o Mercosul e a Argentina terá seu escritorio definitivo no lugar onde funcionou a Escola de Mecânica da Armada, um dos centros clandestinos de detenção mais brutais da última ditadura militar (1976-1983), agora recuperado como o Espaço para a Memória e para a Promoção e Defesa dos Direitos Humanos . 

Fonte: http://www.vermelho.org.br/ms/noticia.php?id_secao=1&id_noticia=194994
Acesso em 30/09/12.

sábado, 29 de setembro de 2012

A Cultura Organizacional e As Pessoas

Pessoas e cultura organizacional não podem separar-se. Os envolvidos com as empresas trarão maiores avanços às organizações se conhecerem bem a cultura em que estão inseridos.
Por Paulo Roberto
"E se todas as pessoas fossem iguais?". Volta e meia essa pergunta surge por algum motivo; específico ou não. "Talvez não fosse tão divertido"; poderia ser uma resposta. Assim com chato seria se todas as empresas fossem iguais; concorda? Sendo assim, e de forma geral, assim como as pessoas são diferentes, as organizações também são, e no caso das empresas, muito se deve a Cultura Organizacional.
Na sua essência, todas as organizações são definidas por pessoas; o recurso humano é dos mais valiosos para as empresas. E as pessoas são a base para a formação da cultura das organizações.
Idalberto Chiavenato define a cultura organizacional, ou corporativa, como o "conjunto de hábitos e crenças, estabelecidos através de normas, valores, atitudes e expectativas compartilhadas por todos os membros da organização". Em outra definição, Elliot Jaques cita cultura como o "hábito tradicional e costumeiro de pensar e fazer as coisas, que é compartilhado em maior ou menor grau pelos seus membros e que os novos membros devem aprender e assimilar, pelo menos parcialmente para que possam ser aceitos no contexto da empresa". A cultura espelha a mentalidade que predomina em uma organização; e isso aparece do compartilhamento entre todas as pessoas, como demonstrado pelos autores.
E por que a Cultura Organizacional é importante? Ela é a identidade das empresas; não é possível conhecer plenamente uma organização se a sua cultura não está compreendida.
Para os colaboradores recém-chegados a cultura se apresentará naturalmente, no seu dia-a-dia - sendo que novos funcionários já possuem alguma característica compatível com a cultura, pois passaram no filtro do processo de seleção -, e também de forma normativa, de acordo com a capacidade da empresa na integração. Já funcionários conhecedores da cultura tem o desafio de transferi-la aos novos membros; e os gestores e líderes têm a função primordial de manter ou buscar criar uma cultura adequada, visualizando a cultura organizacional como fator para o bom desempenho econômico da empresa.
Seja qual for o papel de cada pessoa na organização é certo que a cultura ali presente será influenciadora; logo, ter esta consciência e conhecer a Cultura Organizacional, num todo, possibilitará avanços para as pessoas e para a organização.
Referências
CHIAVENATO, Idalberto. Gestão de Pessoas: o novo papel dos Recursos Humanos nas organizações. ed Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
JAQUES, Elliot. The Changing Culture of a Factory. Londres, Tavistock, 1951.
Acesso em 29/09/12.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Memórias de Minhas Putas Tristes

Trecho do livro "Memórias de Minhas Putas Tristes", de Gabriel García Marquez

Epoca/Epoca
No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. Lembrei de Rosa Cabarcas, a dona de uma casa clandestina que costumava avisar aos seus bons clientes quando tinha alguma novidade disponível. Nunca sucumbi a essa nem a nenhuma de suas muitas tentações obscenas, mas ela não acreditava na pureza de meus princípios. Também a moral é uma questão de tempo, dizia com um sorriso maligno, você vai ver. Era um pouco mais nova que eu, e não sabia dela fazia tantos anos que podia muito bem estar morta. Mas no primeiro toque reconheci a voz no telefone e disparei sem preâmbulos:
— É hoje.
Ela suspirou: Ai, meu sábio triste, você desaparece vinte anos e volta só para pedir o impossível. Recobrou em seguida o domínio de sua arte e me ofereceu meia dúzia de opções deleitáveis, mas com um senão: eram todas usadas. Insisti que não, que tinha de ser donzela e para aquela noite. Ela perguntou alarmada: Mas o que é que você está querendo provar a si mesmo? Nada, respondi, machucado onde mais doía, sei muito bem o que posso e o que não posso. Ela disse impassível que os sábios sabem de tudo, mas não tudo: Virgens sobrando neste mundo só os do seu signo, dos nascidos em agosto. Por que não encomendou com mais tempo? A inspiração não avisa, respondi. Mas talvez espere, disse ela, sempre mais sabichona que qualquer homem, e me pediu nem que fossem dois dias para revirar o mercado a fundo. Eu repliquei a sério que numa questão dessas, e na minha idade, cada hora é um ano. Então não tem jeito, disse ela sem o menor fiapo de dúvida, mas não importa, assim é mais emocionante, merda, deixa que eu telefono em uma hora.
Não preciso nem dizer, porque dá para reparar a léguas: sou feio, tímido e anacrônico. Mas à força de não querer ser assim consegui simular exatamente o contrário. Até o sol de hoje, em que resolvo contar como sou por minha livre e espontânea vontade, nem que seja só para alívio da minha consciência. Comecei com o telefonema insólito a Rosa Cabarcas, porque, visto de hoje, aquele foi o início de uma nova vida, e numa idade em que a maioria dos mortais está morta.
Vivo numa casa colonial na calçada de sol do parque de San Nicolás, onde passei todos os dias da minha vida sem mulher nem fortuna, onde viveram e morreram meus pais, e onde me propus morrer só, na mesma cama em que nasci e num dia que desejo longínquo e sem dor. Meu pai comprou a casa num leilão público no final do século XIX, alugou o andar de baixo para lojas de luxo de um consórcio de italianos e reservou-se este segundo andar para ser feliz com a filha de um deles, Florina de Dios Cargamantos, intérprete notável de Mozart, poliglota e garibaldina, e a mulher mais formosa e de melhor talento que jamais houve na cidade: minha mãe.
O espaço da casa é amplo e luminoso, com arcos de estuque e pisos axadrezados de mosaicos florentinos, e quatro portas envidraçadas sobre uma sacada corrida onde minha mãe sentava-se nas noites de março para cantar árias de amor com suas primas italianas. Dali se vê o parque de San Nicolás com a catedral e a estátua de Cristóvão Colombo, e mais além os armazéns do cais fluvial e o vasto horizonte do rio grande da Magdalena a vinte léguas de seu estuário. A única coisa ingrata na casa é que o sol vai mudando de janelas no transcurso do dia, e é preciso fechar todas elas para tratar de dormir a sesta na penumbra ardente. Quando fiquei sozinho, aos meus trinta e dois anos, mudei-me para a que tinha sido a alcova de meus pais, abri uma porta de passagem para a biblioteca e para viver comecei a vender o que estava sobrando, e que terminou sendo quase tudo, exceto os livros e a pianola de rolos.
Durante quarenta anos fui o domador de telegramas do El Diario de La Paz, tarefa que consistia em reconstruir e completar em prosa indígena as notícias do mundo, que agarrávamos em pleno vôo pelo espaço sideral através das ondas curtas ou do código Morse. Hoje me sustento, mal ou bem, com minha aposentadoria daquele ofício extinto; me sustento menos com a de professor de gramática castelhana e latim, quase nada com a crônica dominical que escrevi sem esmorecimento durante mais de meio século, e nada em absoluto com as resenhas de música e teatro que me publicam de favor nas muitas vezes em que intérpretes notáveis passam por aqui. Nunca fiz nada diferente de escrever, mas não tenho vocação nem virtude de narrador, ignoro por completo as leis da composição dramática, e se embarquei nessa missão é porque confio na luz do muito que li pela vida afora. Dito às claras e às secas, sou da raça sem méritos nem brilho, que não teria nada a legar aos seus sobreviventes se não fossem os fatos que me proponho a narrar do jeito que conseguir nesta memória do meu grande amor.
No dia de meus noventa anos havia recordado, como sempre, às cinco da manhã. Por ser sexta-feira, meu compromisso único era escrever a crônica que é publicada aos domingos no El Diario de La Paz. Os sintomas do amanhecer tinham sido perfeitos para não ser feliz: me doíam os ossos desde a madrugada, meu rabo ardia, e havia trovões de tormenta depois de três meses de seca. Tomei banho enquanto passava o café, bebi uma caneca adoçada com mel de abelhas e acompanhada por duas broas de farinha de mandioca, e vesti o macacão de brim de ficar em casa.
O tema da crônica daquele dia, é claro, eram os meus noventa anos. Nunca pensei na idade como se pensa numa goteira no teto que indica a quantidade de vida que vai nos restando. Era muito menino quando ouvi dizer que se uma pessoa morre os piolhos incubados no couro cabeludo escapam apavorados pelos travesseiros, para vergonha da família. Isso me impressionou tanto que tosei o coco para ir à escola, e até hoje lavo os escassos fiapos que me restam com sabão medicinal de cinza e ervas milagrosas. Quer dizer, me digo agora, que desde muito menino tive mais bem formado o sentido do pudor social que o da morte.


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Como aumentar a capacidade de memorização?


Assim como a saúde do corpo em geral, uma boa memória depende de uma vida saudável, com alimentação adequada, exercícios físicos e uma boa noite de sono. Além disso, a mente também precisa estar ativa e aberta para novos aprendizados.   
Não deixe de usar bloquinhos ou agenda para registrar números, datas e compromissos diários - SXC/Divulgação
SXC/Divulgação
Não deixe de usar bloquinhos ou agenda para registrar números, datas e compromissos diários
Dicas para estimular a memória  

linkDesafie sua memória de forma lúdica. Você pode tentar, por exemplo, memorizar alguns itens da sua lista de compras. Comece com quatro itens, e a cada semana escolha uma categoria. Aumente o número usando categorias variadas, como, por exemplo, o que deve ser comprado que começa com a letra “C” 
linkFaça associações e use a imaginação para associar nomes, ideias e palavras, forme rimas 
linkFaça mudanças na rotina e quebre hábitos. Por exemplo, escolha um caminho novo para voltar do trabalho, mude de lugar na mesa na hora das refeições 
linkAntes de dormir, lembre de todas as coisas que você fez durante o dia, detendo-se mais tempo nas prazerosas. Depois, tente recordar-se delas em ordem inversa 
linkPreste atenção às informações que recebe. Assim, os mecanismos naturais de fixação funcionarão bem. Repare nos detalhes, nos gestos do interlocutor e nas expressões faciais 
linkDurma bem. A fixação de novos dados se consolida durante o sono 
linkPratique atividades que exijam concentração e raciocínio. Isso vale tanto para esportes em dupla ou em grupo, palavras cruzadas, jogos como xadrez, gamão ou damas. Essas atividades forçam a elaborar estratégias de antecipação e estimulam a capacidade de concentração 
linkMantenha uma sequência lógica em suas tarefas diárias, procurando organizá-las de acordo com critérios de prioridade 
linkReduza o estresse com técnicas de respiração e relaxamento e exercícios físicos regulares. Pesquisas sugerem que a prática de atividade física constante retarda o envelhecimento do cérebro pois facilita a liberação de endorfinas, neurotransmissores que garantem sensação de bem-estar 
linkUse a agenda para registrar números, datas e compromissos diários. Isso libera espaço na sua cabeça
linkO cérebro pesa cerca de 2% do peso total do corpo de um adulto e usa 20% da oferta total do sangue oxigenado - o que demanda nutrição 24 horas por dia. Uma dieta balanceada deve ser rica em fibras, conter ferro, proteínas, cálcio, sódio e potássio, carboidratos complexos e pouco açúcar 
linkTome sol na medida certa. A exposição estimula as neurotrofinas (proteínas que favorecem a sobrevivência dos neurônios) e ainda ajuda na produção de vitamina D e na absorção de cálcio
linkCultive a tranquilidade e a alegria de viver. O sofrimento envelhece o cérebro 

Fatores que podem comprometer sua capacidade de memorização  


Falta de interesse e motivação: se você não se importa com os fatos à sua volta e como você os observa, então provavelmente você os notará muito pouco e os memorizará menos ainda

Viver no 'automático':
 É preciso tomar consciência do entorno e não apenas cumprir as tarefas como um robô

Estresse:
 tensão e ansiedade desviam o foco da sua atenção do exterior para si mesmo 
Rotina: Fuja da monotonia e tente variar sua rotina diária de modo que situações novas e atividades variadas o instiguem. Organize sua vida gastando o máximo de tempo possível com coisas de que você gosta 
Falta de concentração: na correria do dia-a-dia, é fácil dissolver a concentração e dirigir o foco de atenção para algum problema que martela a sua cabeça. Escreva seu conflito num papel - você pode até optar por fazer um desenho. Dobre o papel e guarde-o para mais tarde

Palácios da Memória

Vencerei então esta força de minha natureza, subindo por degraus até meu Criador. Chegarei assim diante dos campos, dos vastos palácios da memória, onde estão os tesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda espécie. Lá também estão armazenados todos os nossos pensamentos, quer aumentando, quer diminuindo, ou até alterando de algum modo o que nossos sentidos apanharam, e tudo o que aí depositamos, se ainda não foi sepultado ou absorvido no esquecimento. Quando ali penetro, convoco todas as lembranças que quero. Algumas se apresentam de imediato, outras só após uma busca mais demorada, como se devessem ser extraídas de receptáculos mais recônditos. Outras irrompem em turbilhão e, quando se procura outra coisa, se interpõem como a dizer: “Não seremos nós que procuras?” Eu as afasto com a mão do espírito da frente da memória, até que se esclareça o que quero, surgindo do esconderijo para a vista. Confissões de Santo Agostinho, Capítulo VIII

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Suíça reflete sobre cultura imaterial

O que muros em pedra natural têm a ver com uma procissão de lanternas de abóbora ou o dialeto falado? Ou com o hábito de comer fondue, contar histórias de fantasmas ou a cultura do castanheiro? E o que é mais tipicamente suíço?
A resposta: tudo isso figura na lista de 167 tradições vivas recentemente publicada na internet pela Secretaria Federal de Cultura como parte da implementação na Suíça da Convenção de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO, ratificada por ela em 2008.

Três ou quatro delas serão posteriormente submetidas à UNESCO para inclusão em uma lista mundial. Especialistas farão a seleção e um conselho tomará a decisão final.

Essa convenção da UNESCO refere-se à “cultural imaterial”, mas David Vitali, responsável pela coordenação em nome da Secretaria Federal de Cultura, admitiu ter considerado o conceito “opaco”. Por essa razão a Suíça decidiu rapidamente de trocá-la por “tradições vivas”.

Mas enquanto isso torna claro que as tradições ainda são muito vivas e que estão sendo transmitidas, é de alguma forma enganadora: as pessoas tendem a conectar a expressão apenas à cultura popular. E, de fato, costumes tradicionais estão fortemente representados na lista.

“Isso tem a ver com a nossa ideia do que tradição e cultura são intangíveis. Porém em médio prazo gostaríamos de corrigir isso e preencher algumas lacunas em categorias que não estão bem representadas”, explica.

De fato, a UNESCO especificou cinco categorias: “práticas sociais” e “artes cênicas” cobrem tópicos como carnavais e cornes dos Alpes. As outras três são “expressões orais”, “artesanato tradicional” e “conhecimento sobre a natureza”.
Fazendo escolhas 
Vitali não está sozinho em sua preocupação com as lacunas.

Ellen Hertz, diretora do Instituto de Etnologia na Universidade de Neuchâtel, é uma das responsáveis pelo projeto multidisciplinar de pesquisa intitulado “Herança Cultural Intangível: o toque de Midas?”, criado para avaliar como a Suíça, com sua “longa tradição de estudos das próprias tradições” poderia se adequar à convenção da UNESCO.

“Nós queríamos ver se teríamos as mesmas antigas tradições como o canto alpino ‘yodel’ e costumes, ou se haveriam coisas que foram deixadas de lado em representações prévias da Suíça”, disse.

Enquanto eles descobriram que os itens familiares estão bem representados – “não há nenhuma razão para que eles não estivessem presentes” – há apenas algumas coisas novas.

Exemplos não tradicionais citados por ela incluem noções abstratas como democracia direta e também a relojoaria: “É algo curioso, pois é uma atividade exercida nas montanhas, mas também um negócio urbano de amplitude internacional e que envolve robôs e mecanização” (o item está categorizado no tópico de artesanato tradicional).

O site de tradições vivas descreve todas as tradições da lista como “parte integral da nossa diversidade cultural e identidade”. A Secretaria Federal de Cultura também fez questão de permitir que os grupos de imigrantes sugerissem suas próprias tradições.

O sucesso foi considerável. As propostas incluíam “Italianità” no cantão do Valais (sudoeste da Suíça), a contribuição da comunidade de imigrantes italianos à região, e o festival de San Giuseppe, originado da Sicília e hoje celebrado por toda a comunidade em Laufenburg no cantão da Argóvia.

A descrição de San Giuseppe diz que “a festa ajuda a reforçar a solidariedade entre os membros da população da cidade”, enquanto a imigração italiana poderia ser um “exemplo capaz de abrir caminhos para outros grupos de imigrantes”.

“É importante para nós que o foco não seja em ‘tradições suíças’, mas em tradições praticadas na Suíça”, reforça Vitali.

“E se você perguntar a um especialista em costumes populares, ele irá contar que muitas das tradições que pensamos terem longas raízes na nossa cultura foram, na realidade, importadas ou inventadas.”
Surpresas 
Qualquer pessoa que tenha vivido na Suíça, até mesmo por pouco tempo, estará familiarizada com pelo menos um dos itens da lista, mas a diversidade é tão grande que poucos irão conhecer tudo.

O diretor da Secretaria Federal de Cultura, Jean-Frédéric Jauslin, nativo do cantão de Neuchâtel, ficou muito feliz de ter encontrado dentre os itens incluídos duas preferências da sua infância: a patinação no gelo no rio Doubs e o “torrée”, um tradicional churrasco local.

Jean-Bernard Münch, presidente da Comissão Suíça para UNESCO, saúda a inclusão da criação de cavalos da raça Franches-Montagnes, mas pensa que a ovelha de nariz-preto do Valais mereceria ter sido incluída também.

Algumas das escolhas surpreenderam.

“Quando a lista inicial foi apresentada, houve várias questões críticas como ‘Por que você incluiu coisas modernas como o encontro de motociclistas em Hauenstein?’”, conta Vitali. “Mas o que queremos é uma lista das tradições vivas e não importa se elas são antigas ou não, se elas são parte de uma cultura popular estabelecida ou uma contracultura generalizada.”

O encontro de motociclistas, organizado em um restaurante no cantão de Solothurn todas as semanas de março a outubro, atrai entusiastas de motocicletas de todas as partes da Suíça desde 1968.
Coordenação 
Dado o sistema federativo da Suíça, onde tanto poder é transferido aos cantões, uma coisa não é surpreendente sobre essas listas, por vezes surpreendentes: é que nelas deve haver uma grande variedade, especialmente de abordagens.

Marc-Antoine Camp, da Universidade de Ciências Aplicadas e Artes Lucerna, é responsável pelos subprojetos cantonal e regional. Para ele o trabalho foi um grande desafio.

“Alguns queriam uma abordagem ascendente, baseado principalmente na opinião dos praticantes. Outros davam mais importância à opinião dos especialistas. O compromisso foi que tentamos combinar os dois em todos os casos”, explicou.

“Mas não podíamos contar a ninguém o que fazer. O projeto foi baseado no fato de que os cantões são responsáveis pelo conteúdo.”

Não é por nada que a procura do consenso e a democracia direta estão na lista, pontos que se aplicam a toda Suíça.
Julia Slater, swissinfo.ch
Adaptação: Alexander Thoele
Acesso em 26/09/12.

Cultura: a carta dos movimentos a Marta Suplicy

Que propostas foram apresentadas à ministra, em 20/9. Por que elas abrem nova avenida para a cultura política da autonomia?
Uma grande inovação política pode ter ocorrido em 20 de setembro, quando os movimentos sociais da Cultura reuniram-se com a nova ministra da área, Marta Suplicy. O encontro permite ter esperanças na recuperação de um ministério extremamente inovador, durante o governo Lula – porém opaco, nos últimos dois anos. Mas seu alcance vai além. Ele abre novas janelas para a ação dos movimentos que reclamam a autonomia e a reinvenção da política, mas que não abrem mão de exercer influência sobre o Estado desde já. E marca um contraste brutal entre a ação da sociedade civil organizada e o das grandes empresas e lobbies – acostumados a colonizar o poder; fazê-lo agir segundo seus interesses privados; cultivar os sigilos comprometedores, o tráfico de influências e múltiplas formas de corrupção.
Tão logo toma posse, qualquer governante é cercado de aconchegos e ameaças, pelos grupos de pressão. O processo nunca é transparente. Por um lado, há projetos mirabolantes, propostas, reuniões com assessores, insinuações sobre financiamento de campanhas eleitorais futuras. Por outro, sinais de que, caso contrariados, os grupos econômicos serão capaz de reagir. A mídia é peça-chave no processo. “O usineiro faz barulho com orgulho de produtor”, notou Chico Buarque há anos. Às autoridades que se submetem, serve-se os holofotes da fama; às que destoam, as portas do inferno.
A reivindicação de autonomia, expressa pela sociedade civil há tempo, procura romper com este processo. Indica que política vai muito além dos gabinetes e das eleições: implica atitudes e atos assumidos a todo momento e que começam, desde já, a produzir transformações.
Mas como resolver a equação delicadíssima das relações com o poder instituído? Desprezá-lo – o que permite ao capital colonizá-lo com facilidade ainda maior? Resignar-se a suas regras, aceitando e aderindo a relações anti-democráticas, na esperança de mudá-las num horizonte cada vez mais distante e inatingível?
Construído a partir de uma iniciativa da rede Fora do Eixo, o encontro dos movimentos da Cultura com a nova ministra oferece uma nova resposta. E se a sociedade civil, mantendo explicitamente sua autonomia, dialogar com o poder de forma aberta? Em si mesma, a atitude representa uma ruptura: obriga o Estado a praticar uma democracia e transparência há muito esquecidas – e provavelmente mortais, para os interesses que procuram colonizar a política. Basta imaginar o que ocorreria, por exemplo, se fossem públicos os debates sobre como aplicar, em cada cidade, os recursos destinados a Transportes, Segurança, Urbanização ou Educação. Como se sustentariam, à luz do dia, as decisões tomadas, sempre a portas fechadas, para favorecer a minoria que tem carros, vive em bairros “nobres” e se julga “culta”?
A iniciativa que pode construir um novo MinC materializou-se num grande fato político e num documento, entregue à ministra Marta Suplicy e reproduzido abaixo. Vale a pena conhecê-lo. Sinaliza algo também novo. Dispostos a reivindicar abertamente diante do Estado e a conservar sua autonomia, os movimentos sociais elevam o nível do debate e resgatam uma dimensão que a política nunca deveria ter perdido: a polêmica indispensável à construção democrática do futuro comum.
Como reagirão, diante da carta abaixo, os interesses encastelados nas relações tradicionais entre Estado e Cultura? Seria instrutivo (e delicioso…) vê-los apresentar, de público, seus argumentos… (A.M.)

CARTA DO MOVIMENTO SOCIAL DAS CULTURAS
Prezada Ministra Marta Suplicy,
Sua posse significa para nós a possibilidade de recuperar a grandeza e relevância na ação do Ministério da Cultura. Sua trajetória política como prefeita, ministra e senadora nos abre enormes possibilidades de avanço. Oportunidade de recuperar, na área cultural, o sentido de mudança que marcou a eleição de um operário e uma mulher como presidentes. Sentido de uma nova importância estratégica para a cultura que redefiniu a ação do Estado, desde a eleição do ex-presidente Lula – e que tem no governo da presidente Dilma a possibilidade ir além.
Em todas as áreas sociais, mas na cultura em especial, o governo Lula ampliou a ação do poder público, tornando-a abrangente e complexa. E também definiu um novo lugar da sociedade. Envolvendo-nos a todos na co-responsabilidade de formulação e gestão das políticas, deu um salto nas relações entre governo e sociedade civil. Em especial na cultura, o governo passou a se relacionar com dezenas de milhares de projetos, grupos e movimentos culturais. Os mais de 4000 pontos, pontões e pontinhos são apenas 10% das parcerias estabelecidas. Acreditamos que esta amplitude é um dado positivo não apenas para nós, do campo cultural, mas para a qualidade do desenvolvimento que queremos para o Brasil.
Consideramos que a gestão de Ana de Hollanda (e sua equipe de Secretários e presidentes) foi marcada por ausência de diálogo, interrupção de política públicas, omissão frente aos grandes temas e conservadorismo político. Focado na indústria cultural tradicional, nas belas artes, o MinC perdeu significado social, político e cultural. Regredindo para uma ideia elitista de cultura, a gestão Hollanda dedicou-se surpreendentemente a negar o que havia sido contruído em oito anos. A nova gestão herda agora muitos destes nós e desafios.
No vácuo deixado pelo MinC, os movimentos culturais ocuparam o vazio não apenas para resistir, mas para levar adiante a agenda da cultura. Desse ponto de vista, muito avançamos em lucidez e na capacidade de defender agendas que unem a maior paret do setor cultural.
Acreditamos que sua posse encerra este ciclo. E por isso defendemos que os programas e ações precisam não apenas ser retomados, mas fortalecidos, ampliados e atualizados. A sociedade quer voltar a formular junto ao MinC, sobretudo, para abrir novas portas e caminhos não desbravados.
O Ministério da Cultura que queremos precisa ter as portas abertas, ser republicano, posicionando a cultura acima de interesse partidários, armadilhas tecnocráticas ou lobbies (muito oriundos do próprio mundo da cultura) que tentam minar a ação pública.
Assim ouvimos com alegria o chamado da Ministra ao diálogo e à construção de uma agenda. Respeitosamente, nós, movimentos da cultura, artistas, produtores culturais, intelectuais, grupos culturais, pontos de cultura, povos de terreiro apresentamos algumas propostas. Agendas que encontram base no Plano Nacional de Cultura (2010), na II Conferência Nacional de Cultura.
1- É preciso destravar agenda da modernização da Lei de Direitos Autorais e da fiscalização da gestão coletiva, em especial do ECAD. Se de um lado, artistas são fragilizados pelo atual sistema. De outro, o compartilhamento do conhecimento, a internet e a inovação são ameaçadas por uma legislação anacrônica de direito autoral.
2- A lei Rouanet continua gerando enormes distorções e concentrações de recurso público. Por isso, é fundamental a reforma imediata no financiamento da cultura, com a tramitação e posterior sanção do Procultura e do Vale-Cultura. É preciso recuperar a presença do MinC no Congresso Nacional: seja para o acompanhamento do MinC na tramitação dos projetos de lei da cultura, seja para garantir o mínimo de 20% de investimento privado em cada projeto cultural. É preciso retomar a parceria com as Estatais, para editais mais democráticos e transparentes.
3 – É preciso garantir o apoio do MinC à Internet Livre, ao Marco Civil da Internet, às redes sociais e culturais, a retomada do espaço de promoção da cultura digital, ativamente, por meio de políticas que já foram desenhadas nas edições dos Fóruns de Cultura Digital.
4- Retomar o fomento à diversidade cultural, com especial atenção aos indígenas, aos pontos de cultura, quilombolas, povos de terreiro, griôs, e seus projetos culturais. Estudar a possibilidade de reverter o decreto de desmantelamento (em 2012) da Secretaria de Diversidade Cultural, responsável por esta agenda. Com Lula, ultrapassamos o redutor modelo da Identidade (herdeiro do positivismo, do nacionalismo e do militarismo). Hoje nossa grande pauta internacional é a Diversidade Cultural, no qual a identidade não é percebida como conjunto homogêneo, mas como rico agrupamento de signos. Desejamos a retomada vigorosa de políticas para indígenas, ciganos, GLBT, infância, terceira idade.
5- É necessário urgentemente destravar e ampliar o Programa Cultura Viva. Os pontos de cultura estão há dois anos em permanente asfixia administrativa promovida pelo MinC. É preciso interromper o interminável ciclo de “avaliação” do programa, iniciado em 2011, que não levou a lugar algum e desmobilizou a sociedade.
6- As artes precisam de políticas mais efetivas. É preciso desprovincianizar a Funarte, dando a ela um caráter nacional, plural, e capaz de desenvolver políticas fundamentais na área de música, artes visuais, cênicas. É preciso mudar a sede para Brasília. A Funarte não pode ser apenas uma gestora de equipamentos, mas comandar as políticas nacionais de artes. As políticas do MinC precisa ter alcance nacional e buscar combater as desigualdades regionais. Suas instituições devem ter sede em Brasília, na capital federal.
7- É fundamental a mudança de rumo da Secretaria do Audiovisual e sua reorientação para trabalhar em todas as suas dimensões criativas, técnicas e de preservação do audiovisual. Retomar a agenda das TV públicas, e a interface com a agenda da comunicação. É necessário recuperar programas que foram interrompidos de forma arbitrária, como o DOC-TV Brasil.
8- Recuperar a capacidade articulação do MinC com outros ministérios da áreas social. Educação sem cultura é ensino, saúde sem cultura é remediação, segurança sem cultura é repressão, desenvolvimento social sem cultura é assistencialismo. A ação da praças de esporte e cultura tem sido conduzidas sem qualquer transparência.
9- Distanciar o MinC de lobbies privados que agenciam a Lei Rouanet e operam a partir do ECAD. Promover uma política de fomento sem atendimento prioritário de partidos, clientelas ou dos grandes operadores de incentivo fiscal. As reformas da Lei Rouanet e do Direito Autoral, devem ser feitas a partir de uma visão de conjunto.
10 – Sanear a Biblioteca Nacional, garantindo que essa importante instituição cumpra sua missão de guarda e disponibilidade do acervo. Sugerimos um novo locus de coordenação da política de leitura, dentro do MinC, para que a política seja a mais ampla. Sanear a política de livro e leitura de lobbies de editoras e livreiros.
11- Garantir transparência na gestão do IBRAM e atualizar o Iphan. As políticas para museus não podem ignorar a demanda de acervos de artes visuais no Brasil.
12- A Ancine se transformou numa mega agência de regulação de conteúdo. Manter a agência reguladora distante de lobbies de produtores cinematográficos, garantindo sua eficiência e interesse público.
A partir desses considerandos, o movimento social das culturas se dispõe a construir conjuntamente uma agenda de trabalho como o #NovoMinC.
Brasília, 20 de setembro de 2012

Acesso em 26/09/12