Vamos fazer as devidas ressalvas primeiro, antes
que a polícia de plantão venha me dizer que estou fazendo um desserviço à
ciência brasileira. É claro que gostaria de ver mais jovens se tornarem
cientistas, e quero contribuir para isso. Mas decidi que faz parte do meu
trabalho de divulgação científica tornar público e notório como é se tornar
cientista no Brasil.
Meus objetivos aqui são promover a conscientização
das pessoas sobre a realidade da carreira de um cientista e, quem sabe, gerar
com isso um certo espanto e revolta; e contribuir para que a escolha dos jovens
por uma carreira em pesquisa seja consciente, apesar de tudo o que vem a
seguir. Mas, sobretudo, o que eu gostaria é de gerar indignação suficiente para
fazer a carreira de cientista (1) passar a existir de fato, e (2) ser
valorizada.
Feitas as ressalvas, vamos então à minha campanha
de anti-propaganda sobre a ciência no Brasil!
Você que é jovem e está considerando se tornar
pesquisador: você sabia que…
- durante a faculdade, seus estágios de iniciação
científica serão remunerados em apenas 400 reais – isso mesmo, menos do que um
salário mínimo? Este é o valor atual definido pelo CNPq. E isso é SE você
conseguir bolsa de iniciação científica, porque a Faperj, por exemplo,
atualmente limita a sua concessão a UMA bolsa por pesquisador, e o CNPq-PIBIC a
duas bolsas. Em um laboratório de tamanho médio, isso já não será suficiente
para garantir bolsas a todos os estagiários – o que significa que é vexaminosamente
comum termos estagiários trabalhando de graça;
- quando terminar a faculdade, a não ser que
consiga emprego na indústria ou em empresas privadas, para fazer pesquisa você
precisará concorrer a bolsas de R$ 1.350 para fazer mestrado? Enquanto isso,
seus colegas formados em administração, engenharia, advocacia já estarão
entrando para o mercado de trabalho, ganhando salários iniciais (com todos os
direitos trabalhistas) de 3 a 7 mil reais reais ou mais. Ah, eu mencionei que,
embora se espere que você trabalhe 40 horas por semana em dedicação exclusiva
durante o mestrado, você não terá qualquer direito trabalhista? Isto porque o
seu trabalho ainda não é considerado, ahn, trabalho…
- …é mais fácil conseguir bolsa do Ciência Sem
Fronteiras para fazer GRADUAÇÃO no estrangeiro do que conseguir uma bolsa de
pós-graduação no país? É isso mesmo: exportamos nossos alunos de graduação, mas
não temos bolsas suficientes para mantê-los na pós-graduação no país.
- quando você terminar o mestrado, a não ser que
consiga emprego como pesquisador em empresas privadas (que são pouquíssimos),
você terá necessariamente que fazer um doutorado? A razão é que o cargo de
“pesquisador” em nosso país é quase inexistente; somente institutos de pesquisa
como o INCA ou a Fiocruz oferecem emprego (através de concurso público) para
pesquisadores (e muitas vezes exigem doutorado). Todas as demais possibilidades
de emprego para um pesquisador são como “professor universitário” – e este
cargo, também somente acessível por concurso público, é hoje essencialmente
restrito a quem já tem título de Doutor.
- então, com 3 anos de formado, você terá que
concorrer a bolsas de R$ 2.000 mensais para fazer doutorado? Isso, vou repetir:
seus colegas já estarão no mercado de trabalho, ganhando salários reais, tendo
seu trabalho chamado de “trabalho”, com direito a férias e 13o salário – e, com
sorte, você terá assinado um papel aceitando receber DOIS mil reais por mês
pelos próximos 4 anos. E fique muito contente de ter uma bolsa: como dizem
nossos detratores, você deveria ficar “muito feliz de estar sendo pago para
estudar”. Exceto que você não estará “estudando”; você estará trabalhando,
gerando conhecimento, e contribuindo para as universidades publicarem os
artigos científicos que lhes servem como base de avaliação no cenário mundial.
- que, durante todos esses anos de pós-graduação,
para receber uma bolsa você NÃO poderá ter qualquer outra fonte de renda? Sim,
você pode ter outro emprego e fazer pós-graduação sem receber bolsa – mas é
pouco provável que consiga terminar a pós-graduação assim. Para receber uma
bolsa, você será obrigado a assinar uma declaração humilhante de que não tem
qualquer outra fonte de renda. Bom, mais ou menos; a Capes há um ano decidiu
aceitar acúmulo de bolsa com “emprego de verdade” SE for na mesma área da sua
pós-graduação. Adivinha qual é a chance de você ter esse “emprego de verdade”?
Pois é.
- agora, com o diploma de Doutor em mãos, você
terá ganhado o direito de competir por vagas para… Professor. Isso mesmo: não
de “pesquisador”, mas de “professor”. Isso porque as universidades públicas,
onde a boa ciência é feita no país, somente contratam “professores”. Ou seja:
com MUITA sorte, você será contratado, no mínimo SETE anos após a graduação,
para fazer algo que você NUNCA fez: dar aulas. Seu salário inicial líquido (seu
primeiro salário de verdade!) será algo em torno de 5 mil reais – mas não se
engane, seu “vencimento básico”, aquele que o governo usará para talvez um dia
pagar sua aposentadoria, será de não muito mais do que 2 mil reais…
- é mais provável, no entanto, que você NÃO
consiga emprego imediatamente, uma vez doutor, e tenha que ingressar no limbo
dos pós-doutorandos? Um “pós-doutor” é exatamente isso que o nome indica:
alguém que já é doutor, mas ainda não tem emprego. É um limbo criado pelo
sistema para manter interessados os cada vez mais numerosos recém-doutores que
não encontram emprego nem como pesquisadores, nem como professores. Pela mesma
tabela do CNPq, um recém-doutor recebe uma bolsa de R$ 3.700 mensais, livres de
impostos. Ou seja: lembra daquele salário inicial dos seus colegas
recém-formados? Um aspirante a cientista finalmente conquista o direito a um
valor semelhante… SETE anos após a graduação. Ah, claro: ainda sem qualquer
direito trabalhista, pois você “não trabalha”. Permita-me fazer as contas para
você: a esta altura, você esta perto de completar 30 anos de idade, e
oficialmente… “nunca trabalhou”;
- A esta altura, você já será para todos os fins
práticos um Cientista – mas ainda não terá direito de pedir auxílio às agências
de fomento para fazer pesquisa? Para gerenciar um auxílio-pesquisa é preciso
ter vínculo empregatício com uma instituição de pesquisa – e isso, tirando os
pouquíssimos cargos de Pesquisador de fato na Fiocruz, INCA, IMPA etc, você só
consegue se virar… professor universitário;
- SE você conseguir ser aprovado em concurso para
professor universitário E for fazer pesquisa de fato, você não inicialmente
ganhará NEM UM CENTAVO A MAIS por isso? Você terá a mesma carga horária de
aulas a cumprir, aulas por preparar e atualizar todos os semestres, mas o
trabalho de pesquisa, com o qual você tanto sonhou, é… por sua conta. Se você
resolver não fazer pesquisa e apenas der aulas, como você foi oficialmente
contratado para fazer, está tudo bem. Talvez seus colegas torçam o nariz para
você, porque esqueceram que também o emprego deles é apenas como professores, e
não pesquisadores, mas você estará rigorosamente correto se só fizer seu
trabalho de professor.
- Apesar disso tudo, sua progressão na carreira
universitária será dependente do seu trabalho de pesquisa? Você leu
corretamente: você foi contratado como PROFESSOR, mas sua avaliação funcional
será feita de acordo com as suas atividades como PESQUISADOR…
- SE você tiver produtividade suficiente, em
alguns anos você poderá concorrer a uma bolsa de Pesquisador do CNPq, que
complementa seu salário em R$ 1.000 por mês. E isso é todo o incentivo
financeiro que você receberá para fazer pesquisa.
Já desistiu? Pelo bem da ciência brasileira,
espero que… sim. Esta é minha campanha de anti-propaganda em prol da melhoria
da ciência no meu querido país: torço para que você tenha ficado indignado a
ponto de considerar fazer outra coisa da sua vida. Precisamos de uma crise, e
um desinteresse súbito da parte de nossos jovens seria muito, muito, muito
eloquente.
FONTE:
Suzana Herculano-Houzel
http://posgraduando.com/blog/voce-quer-mesmo-ser-cientista
Nenhum comentário:
Postar um comentário