segunda-feira, 26 de maio de 2014

Usos e abusos da memória: entrevista com Andreas Huyssen

Por Guilherme Freitas

 

Em 2007, a artista colombiana Doris Salcedo ocupou uma das salas da galeria londrina Tate Modern com uma instalação formada por uma fenda no piso com 167 metros de extensão. O título do trabalho, “Shibboleth”, era uma referência bíblica: numa passagem do Antigo Testamento, os integrantes de uma tribo de Israel reconhecem os forasteiros pelo sotaque com que pronunciam essa palavra. Diante do espanto de críticos e visitantes que se viam forçados a saltar a obra para entrar no museu, Salcedo afirmou que quis representar “fronteiras, a experiência dos imigrantes, da segregação e do ódio racial”.

Na terça-feira, o crítico alemão Andreas Huyssen encerrou com imagens dessa instalação a primeira das três conferências que realizou esta semana no Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá, como parte de um curso promovido pelo MAR em parceria com o Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da UFRJ. Professor de literatura comparada na Universidade de Columbia (EUA) e autor de obras influentes sobre a intersecção entre cultura e memória, Huyssen citou o trabalho de Salcedo como exemplo de intervenção artística que consegue evocar abusos de direitos humanos históricos e atuais.

A relação entre memória, arte e direitos humanos é também tema do novo livro de Huyssen, “Culturas do passado-presente” (Ed. Contraponto, tradução de Vera Ribeiro), lançado essa semana. Em 10 ensaios, ele analisa obras do sul-africano William Kentridge, do argentino Guillermo Kuitka e da indiana Nalini Malani. Comenta ainda os impasses enfrentados por museus e memoriais dedicados a tragédias como o Holocausto e os atentados de 11 de Setembro, que repetem fórmulas como uso de água, pedra e listas com nomes das vítimas. Traça também a evolução do debate internacional sobre políticas da memória, desde a discussão sobre o passado nazista na Alemanha depois da Segunda Guerra até as grandes transformações mundiais dos anos 1980 e 90, com o fim das ditaduras na América Latina, do apartheid na África do Sul e do bloco comunista no Leste Europeu.

Em entrevista ao GLOBO durante sua passagem pelo Rio, Huyssen defendeu que os estudos sobre memória precisam se alinhar à luta por direitos humanos, para evitar que o olhar para o passado seja “autoindulgente e sem vitalidade política”. E criticou o que chama de “abusos da memória”, tanto em discursos nacionalistas que apelam a mitos históricos para justificar barbáries quanto nas ondas “retrô” na moda, na música e na arquitetura.
Em “Culturas do passado-presente”, você mostra como os estudos sobre memória influenciaram vários aspectos da esfera pública, como as artes, a política e o sistema judiciário. Quais foram as mudanças mais importantes nos discursos sobre memória nas últimas décadas?

Cresci na Alemanha, onde desde os anos 1960 havia uma preocupação com a política da memória, principalmente em relação aos crimes do Terceiro Reich e o Holocausto. Comecei a escrever sobre isso nos anos 1970. A partir dos anos 1980, transformações significativas no mundo fizeram com que o tema da memória ganhasse visibilidade em diversos contextos nacionais: a queda das ditaduras latino-americanas, o fim do apartheid na África do Sul, o colapso da União Soviética, entre outros casos. Comecei a me interessar pelas formas como o discurso sobre memória surgido nas discussões sobre o Holocausto na Europa, primeiro na Alemanha mas logo também em países como França e Polônia, migrava para esses outros contextos. A Argentina é um caso chave. Quando estive lá pela primeira vez, nos anos 1990, já havia um grande debate sobre memória e justiça. Estive no Chile na mesma época e isso não acontecia. No Brasil está se intensificando só agora. 

Como você compara o debate no Brasil hoje em torno da Comissão da Verdade com a situação em países como Argentina e Chile?

O debate brasileiro está em outro estágio em relação aos países vizinhos, mas isso não significa que não vá se desenvolver mais. No Chile, até que Pinochet tivesse a prisão decretada pelo juiz espanhol Baltazar Garzón, em 1998, não se falava tanto sobre os crimes de ditadura. E de repente o debate explodiu. Mas me chama atenção, por exemplo, a diferença entre o tratamento dado ao tema da anistia na Argentina e no Brasil. Lá houve várias idas e vindas desde os anos 1980, até a anistia ser revogada. Aqui isso nunca aconteceu desde 1979, quando a demanda popular era pela anistia aos opositores perseguidos, mas o regime aproveitou para se autoanistiar.

No livro você fala em uma “guinada transnacional” dos debates sobre memória. Como isso influencia a maneira como os países lidam com crimes e tragédias do passado?

Memória é um tema amplamente evocado hoje, seja no contexto da reparação às vítimas das ditaduras latino-americanas, do regime de terror de Pol Pot no Cambodja, do genocídio na Armênia ou dos massacres na época da definição das fronteiras entre Índia e Paquistão. Mas esses debates costumam operar em contextos regionais ou nacionais. Há uma guinada transnacional quando reconhecemos que esses discursos têm impacto uns sobre os outros. Por ser um caso mais antigo e portanto mais pesquisado, o Holocausto se tornou uma matriz para esse debate. Na Argentina, o primeiro relatório sobre crimes da ditadura, divulgado em 1983, foi batizado de “Nunca Mais”, um slogan que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial. Não se trata, é claro, de comparar ou igualar o Holocausto a fenômenos posteriores. Mas signos ligados a ele são usados em outros contextos para denunciar crimes de Estado. Outro exemplo de debate transnacional é a influência exercida pela criação da Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul, em 1998. Foi a primeira do tipo e se tornou a matriz para iniciativas semelhantes no campo dos direitos humanos em todo o mundo.

Que contribuições os estudos sobre memória podem dar ao campo dos direitos humanos?

Uma abordagem que relacione os dois discursos me parece mais frutífera para ambos. Nos Estados Unidos e na Europa, há cada vez mais estudos sobre memória, muitos deles apenas autoindulgentes, sem vitalidade política. Um risco do discurso da memória é buscar legitimação para o presente olhando para o passado, mas sem pensar no futuro. Já o discurso dos direitos humanos olha também para o futuro, porque deseja transformar a legislação. Por outro lado, o típico discurso liberal sobre direitos humanos individuais muitas vezes não presta atenção na história nem nas culturas locais, fazendo uma mera transposição de valores ocidentais para contextos onde essas questões se estruturam de outras formas. Quando falamos de direitos culturais de minorias, seja na Ásia ou na Amazônia, o discurso da memória pode abrir caminho para a compreensão de particularidades históricas e sociais que o discurso de direitos humanos individuais relega a segundo plano. 

Você já escreveu sobre “abusos de memória”. O que essa expressão pode significar? 

Mesmo entre muitos pesquisadores da área, existe a noção ingênua de que a memória é sempre “boa”, porque seria um antídoto para o esquecimento, o silêncio e a repressão. Quando se fala da memória das vítimas de ditaduras, é claro que isso é verdade. Mas há casos mais complicados. Na época do esfacelamento da Iugoslávia, por exemplo, Slobodan Milosevic manipulou a memória das batalhas contra os muçulmanos no século XIV para justificar a limpeza étnica e assegurar sua base de poder. É um caso de memória a serviço do nacionalismo radical. A memória está sujeita a abusos políticos e também econômicos. Sempre digo que há uma espécie de “máquina da memória” operando na indústria cultural. Há toda uma série de “modas retrô” na música, no vestuário, na arquitetura etc. E hoje a internet faz com que a cultura do passado esteja disponível numa escala sem precedentes. A questão é: isso produz só memória ou também amnésia? O cineasta alemão Alexander Kluge já falou em um “ataque do presente contra o resto do tempo”. Quando tudo se torna presente, corremos o risco de deixar de lado o passado e o futuro.

Você falou sobre como a partir dos anos 1980 o debate sobre memória se espalhou por América Latina, África, Ásia. O livro analisa obras de artistas dessas regiões, como o sul-africano William Kentridge, o argentino Guillermo Kuitca, a colombiana Doris Salcedo e a indiana Nalini Malani. Eles lidam com o tema da memória de formas diferentes do que artistas de Europa ou Estados Unidos?

Não existe uma “arte global da memória”, todos esses artistas trabalham em relação com seus contextos nacionais. Mas chama atenção a forma como eles se apropriam dos modos modernistas de representação. Em seus trabalhos sobre a violência na Colômbia, Doris Salcedo faz referências ao Holocausto por meio de citações a Paul Celan (poeta judeu de língua alemã mandado para um campo de trabalhos forçados durante a Segunda Guerra). Kuitca não é explicitamente político, mas faz alusões às suas origens em uma família judaica de Odessa: volta e meia em suas obras aparece um carrinho de bebê descendo uma escadaria, referência à cena clássica de “O encouraçado Potemkin”, de Eisenstein, mas também a seus antepassados imigrantes. Nalini Malani trata da violência contra mulheres e muçulmanos na região do Punjab, que foi partilhada entre Índia e Paquistão, acionando uma constelação de referências ao Holocausto e à Segunda Guerra, inclusive da antiga Alemanha Oriental. Já Kentridge tem um relacionamento muito próximo com a vanguarda histórica: nos anos 1990, por exemplo, dirigiu uma peça teatral inspirada em Alfred Jarry chamada “Ubu e a Comissão da Verdade”, com críticas ao tratamento da memória no pós-apartheid sul-africano. Novas formas surgem das ruínas do modernismo europeu no mundo inteiro, o que serve para nos lembrar que o modernismo nunca foi um fenômeno apenas do Atlântico Norte, um fato evidente mas muitas vezes ignorado. 
Fonte: O Globo

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