MEMÓRIA
Museus situados em aglomerados urbanos da capital arquivam narrativas não encontradas em museus tradicionais
PUBLICADO EM 27/10/13 - 04h00
Um dos conceitos-chave da obra do pensador francês Michel Foucault é a noção de heterotopia, a construção de “um lugar de todos os tempos, fora do tempo”. Um espaço que encerre, em um só lugar, todas as épocas, formas e gostos possíveis, grandes arquivos, em uma totalidade “arqueológica”. Uma das ilustrações mais possíveis deste conceito, para o filósofo, é o museu. É bem possível que ele tinha em mente os históricos locais que guardavam as narrativas consagradas de nosso tempo.
E é bem possível também que ele se deliciaria com a ideia da construção de museus em favelas, onde estão histórias nem sempre vistas pela “alta cultura”. Numa inesperada inversão, falamos de uma “cultura do alto”, dos morros e aglomerados urbanos que, assim como tudo que pulsa vida, também deixa rastros, também produz memória. “A importância destas iniciativas passa por colocar em foco narrativas que não são hegemônicas na história”, destaca Cíntia Oliveira, coordenadora do programa Ponto de Memória do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus). A instituição tem como objetivo apoiar ações e iniciativas de reconhecimento e valorização da memória social. “O que fazemos é possibilitar recursos para que eles também possam compartilhar sua memória. Atualmente existem pontos de memória de diversas temáticas: afro-brasileiras, LGBTT, indígenas, ciganas. O museu é o instrumento de preservação por excelência e um espaço onde essa memória fica acessível”.
Mas a memória é apenas uma das amarrações lógicas por trás dos discursos a respeito de museus em favelas. A própria ideia de um museu “tradicional” é tensionada em falas como a de Wellington Pedro da Silva, do conselho responsável pelo Museu do Taquaril, na região leste da capital mineira. Desde o início, em 2009, a proposta do grupo era colocar a comunidade do Taquaril no protagonismo do projeto. “Um museu tradicional é tido como aquele que seu processo museal está voltado para dentro do próprio museu. Nesse sentido teremos os museus de história, de memória. São guardiões de um passado, de um modo de vida, em sua grande maioria com bens materiais”, afirma. A ideia de um museu em favela é diferente: é entender que os processos que envolvem a construção desse arquivo são também pensar em novas formas de se analisar a sociedade de modo geral.
Silva se filia a um movimento chamado Nova Museologia. “Há um pouco mais de 40 anos, museólogos se reuniram em Santiago, Chile, atendendo a uma convocação da Unesco para discutir a importância e o desenvolvimento do museu no mundo contemporâneo”, explica Silva. “Essa reunião previa a continuidade de muitos padrões da Nova Museologia na tentativa de promover a noção de um museu integral e integrado. O museu integrado é visto como um elemento integral e orgânico de uma estrutura social e cultural maior, como um elo de uma corrente e não mais como uma fortaleza ou ilha com acesso restrito”. Como sintetiza Oliveira, “o compromisso é com a construção social, e não mais com uma instituição fechada em si. A ideia é capturar os entornos também”.
Social. Estes entornos são pautados por questões que ultrapassam a fruição estética proporcionada pelo museu. Se Foucault falava em uma “imobilidade cristalizadora”, que nos deixasse longe do mundo “lá fora” quando adentrássemos um museu, o movimento nas favelas é de mobilidade. Museus como agentes de mudança e promotores do desenvolvimento, que se tornem “plataformas sólidas de gestão com vistas a ajudar a melhorar a qualidade de vida das pessoas”, como argumenta Silva.
É difícil dissociar uma questão da outra. A gênese do Museu Muquifu, no Aglomerado Santa Lúcia, região sul de Belo Horizonte, vem de uma década atrás, no dia 10 de dezembro, quando uma bala disparada por alguém no local atingiu um policial militar. Como forma de repressão, os policiais ocuparam o local até o dia 24. Nesse período, assassinaram um morador local, que tinha o mesmo nome do suspeito de ter disparado o tiro no policial. “Um servente de pedreiro, (sem envolvimento com o tráfico) foi morto, próximo de onde hoje é o museu, na praça do Boi”, relata o Padre Mauro Luiz Silva, idealizador e curador do museu. “Essa situação de excessos da polícia gerou uma rearticulação da comunidade, com a intenção de fazer algo duradouro”. No ano seguinte nasceu a comissão Quilombo do Papagaio, que, anualmente, promove o evento Três Semanas de Paz e Cidadania, entre os dias 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) e 10 de dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos). Uma das edições tratou da questão da preservação da memória. “Já existia um vasto material produzido, escrito, fotográfico, e queríamos guardar isso em um lugar que não fosse nas gavetas. Decidimos criar um espaço, o Muquifo, onde essas coisas ficariam expostas”, lembra o pároco.
O inventário, portanto, é local e partilhável. Como aponta Oliveira, o acervo de um museu é algo próximo do que acontece com nossas famílias. “Mas nesse caso não é só para você, é para todos, para a comunidade. É a localização de repositórios de memória, do acervo que a comunidade vai decidindo”.
Mas a memória é apenas uma das amarrações lógicas por trás dos discursos a respeito de museus em favelas. A própria ideia de um museu “tradicional” é tensionada em falas como a de Wellington Pedro da Silva, do conselho responsável pelo Museu do Taquaril, na região leste da capital mineira. Desde o início, em 2009, a proposta do grupo era colocar a comunidade do Taquaril no protagonismo do projeto. “Um museu tradicional é tido como aquele que seu processo museal está voltado para dentro do próprio museu. Nesse sentido teremos os museus de história, de memória. São guardiões de um passado, de um modo de vida, em sua grande maioria com bens materiais”, afirma. A ideia de um museu em favela é diferente: é entender que os processos que envolvem a construção desse arquivo são também pensar em novas formas de se analisar a sociedade de modo geral.
Silva se filia a um movimento chamado Nova Museologia. “Há um pouco mais de 40 anos, museólogos se reuniram em Santiago, Chile, atendendo a uma convocação da Unesco para discutir a importância e o desenvolvimento do museu no mundo contemporâneo”, explica Silva. “Essa reunião previa a continuidade de muitos padrões da Nova Museologia na tentativa de promover a noção de um museu integral e integrado. O museu integrado é visto como um elemento integral e orgânico de uma estrutura social e cultural maior, como um elo de uma corrente e não mais como uma fortaleza ou ilha com acesso restrito”. Como sintetiza Oliveira, “o compromisso é com a construção social, e não mais com uma instituição fechada em si. A ideia é capturar os entornos também”.
Social. Estes entornos são pautados por questões que ultrapassam a fruição estética proporcionada pelo museu. Se Foucault falava em uma “imobilidade cristalizadora”, que nos deixasse longe do mundo “lá fora” quando adentrássemos um museu, o movimento nas favelas é de mobilidade. Museus como agentes de mudança e promotores do desenvolvimento, que se tornem “plataformas sólidas de gestão com vistas a ajudar a melhorar a qualidade de vida das pessoas”, como argumenta Silva.
É difícil dissociar uma questão da outra. A gênese do Museu Muquifu, no Aglomerado Santa Lúcia, região sul de Belo Horizonte, vem de uma década atrás, no dia 10 de dezembro, quando uma bala disparada por alguém no local atingiu um policial militar. Como forma de repressão, os policiais ocuparam o local até o dia 24. Nesse período, assassinaram um morador local, que tinha o mesmo nome do suspeito de ter disparado o tiro no policial. “Um servente de pedreiro, (sem envolvimento com o tráfico) foi morto, próximo de onde hoje é o museu, na praça do Boi”, relata o Padre Mauro Luiz Silva, idealizador e curador do museu. “Essa situação de excessos da polícia gerou uma rearticulação da comunidade, com a intenção de fazer algo duradouro”. No ano seguinte nasceu a comissão Quilombo do Papagaio, que, anualmente, promove o evento Três Semanas de Paz e Cidadania, entre os dias 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) e 10 de dezembro (Dia Internacional dos Direitos Humanos). Uma das edições tratou da questão da preservação da memória. “Já existia um vasto material produzido, escrito, fotográfico, e queríamos guardar isso em um lugar que não fosse nas gavetas. Decidimos criar um espaço, o Muquifo, onde essas coisas ficariam expostas”, lembra o pároco.
O inventário, portanto, é local e partilhável. Como aponta Oliveira, o acervo de um museu é algo próximo do que acontece com nossas famílias. “Mas nesse caso não é só para você, é para todos, para a comunidade. É a localização de repositórios de memória, do acervo que a comunidade vai decidindo”.
Visite
Museu do Taquaril
Rua Pedro de Cintra, 156. Taquaril A
Museu dos Quilombos e favelas Urbanos (Muquifu )
Beco Santa Inês, 30. Barragem Santa Lúcia
Fonte: O Tempo Magazine
Nenhum comentário:
Postar um comentário