quinta-feira, 4 de abril de 2013

António Vieira: Obra Completa chega aos leitores

«Vieira global» é o projeto que, depois de 15 tentativas em 150 anos, publica a Obra completa do padre António Vieira. São 30 livros que até 2014 não querem deixar esquecer o jesuíta que no século XVII sonhou Portugal e a sua relação com a Europa e o mundo e não teve medo de enfrentar a sociedade, a realeza e a Igreja.
José Eduardo Franco, historiador e um dos coordenadores da edição, com Pedro Calafate, aponta a atualidade dos escritos do padre António Vieira que nos dias hoje não teria medo de ir para a rua cantar a música «Grândola Vila Morena».


Agência Ecclesia (AE) - A publicação da obra completa do padre António Vieira é apresentada no contexto dos 405 anos de nascimento, mas não podemos passar ao lado da situação que Portugal atravessa. Podemos entender alguns recados de Vieira para a sociedade que vivemos?

José Eduardo Franco (JEF) - Sem dúvida. Vieira tem muito a dizer ao nosso Portugal e à sociedade portuguesa. Ele é um autor anticrise, um homem que acreditou e fez acreditar que Portugal é possível, que valia a pena e que o esforço e dedicação dos portugueses e da pátria seria recompensado numa altura também de severa crise, mais até da crise que vivemos porque não havia na altura as condições que encontramos hoje.
É um autor que na sua escrita mostrou uma grande preocupação social. Criticou fortemente as estruturas de corrupção, a inércia e a falta de empreendedorismo político e social, a forma como se escolhiam os cargos para o governo. Ele tem uma frase interessantíssima onde dizia que o problema da nossa corte e do nosso rei é que procura homens grandes para o governo em casas grandes e muitas vezes os homens grandes estão em casas pequenas. Outra frase diz que a verdadeira fidalguia está na ação.
Vieira falava em mérito por competência e não por herança para o exercício de cargos políticos, garantindo a qualidade dos dirigentes. Ao mesmo tempo criticou fortemente as desigualdades sociais, as formas de opressão, a escravatura. Chegou inclusivamente a ser ameaçado de morte por ter afrontado os coloniais e criticado a forma pouco cristã e desumana dos que garantiam o sustento de Portugal. Ele chegou a comparar as chagas de Cristo aos maltratos que a massa grande de escravos sofria. É uma forma de dignificação e igualdade entre todos os homens.

AE - Falar da atualidade de Vieira é por isso redundante...
JEF - Sem dúvida. O padre António Vieira com o seu pensamento e crítica social ajuda a criar em Portugal uma consciência percursora do que serão no século XVIII os direitos humanos. A crítica à escravatura, à discriminação dos judeus, entre cristãos novos e cristãos velhos, a crítica a todos os sistemas de desigualdade e opressão são exemplos disso.

AE - Olhando para o que fomos, segundo os relatos de Vieira, e para o que somos, a sociedade portuguesa está preparada para a democratização dos seus escritos?
JEF - Com esta publicação pretendemos democratizar Vieira. Defendemos que os bens culturais não devem ser reservados às elites mas devem estar acessíveis para todos. Vieira deve ser lido e saboreado. Por isso estamos a preparar uma obra atualizada, passível de ser lida pelo grande público com notas explicativas para ajudar na sua compreensão.
A fome de cultura é a raiz de todas as fomes e um país menos culto é um país mais frágil e mais manipulável que estará menos preparado espiritualmente e intelectualmente para enfrentar os desafios futuros e projetar a vida.
A cultura é um bem essencial apesar de muitos assim não entenderem. Portugal tem um património cultural extraordinário que muitas vezes é ignorado e desconsiderado. As instituições académicas e culturais em geral têm o dever de oferecer cultura às pessoas e estas devem criar uma consciência nova e perceber que precisam de aceder aos bens culturais, saboreá-los, conhecê-los e interioriza-los para que se possam desenvolver. Não se mede o desenvolvimento de um povo pelas autoestradas ou telemóveis. Se percorrermos a Europa, nos grandes países as pessoas leem no metro, as bibliotecas estão cheias…

AE - Também estão abertas para além dos horários normais de expediente…
JEF - Apostam fortemente na cultura porque os seus governantes consideram-na importante. A longo prazo é um bem que pode ser lucrativo.
Em Portugal existe este terrível problema que é tornar a cultura o parente pobre do orçamento de Estado e em tempo de crise é o parente miserável.
Editar esta obra é chamar a atenção e sensibilizar os nossos governantes e as pessoas em geral para a importância da cultura e nas suas diferentes expressões.

AE - O Padre António Vieira cantaria hoje a música «Grândola Vila Morena»?
JEF - Nos tempos complexos em que vivemos de grave crise, de uma desorientação governativa, de incerteza sobre o futuro, o padre António Vieira teria uma forte intervenção e seria um crítico severo de muitas práticas que correm e são inaceitáveis.

AE - Não só as críticas ao Estado, mas também à Igreja…

JEF - Os sermões do Vieira não poupavam ninguém. Ele entendia que devia denunciar e criticar o que estava mal. Tanto criticou bispos e Papas, como reis e príncipes e na sua cara, sem receio.
Os grandes homens e heróis sempre tiveram um estatuto profético de denunciar o que estava mal e apontar caminhos de renovação. Ele fê-lo ao Estado, à Igreja e à sociedade. Por isso a sua voz foi profética no seu tempo e ainda o é. Por estes motivos Vieira é considerado por pessoas de vários quadrantes com uma extraordinária e bombástica atualidade.

AE - Que plano têm para a edição da Obra Completa?
JEF – A obra completa vai dividir-se em quatro tomos – cada tomo corresponde a um género literário: Epistolografia, Parenética (onde se incluem os Sermões), Profética (os escritos sobre o futuro de Portugal, da Europa e do Mundo), Varia (cartas e pareceres e onde se inclui uma parte menos conhecida de Vieira que é a poesia e o teatro).
A edição vai ser feita em conjuntos de três volumes a cada dois meses. Nos primeiros três quisemos publicar a Clávis que várias vezes teve tentativas de publicação, tanto no Brasil como em Portugal, mas por alguma razão nunca se publicava.
Há partes do Vieira que estavam mesmo embargadas e que agora publicamos na totalidade.

AE - Foram mais de meia dúzia de tentativas para publicar a obra de Vieira…
JEF - Desde 1851 registei mais de 15 tentativas. Há vários projetos começados quer por iniciativas de académicos, de editores ou instituições de natureza vária em Portugal, no Brasil, na Alemanha, na Holanda, em Itália, no México e também nos Estados Unidos da América onde há grupos de estudiosos do padre António Vieira.
Na Europa entende-se. Holanda, França e Itália foram países que Vieira visitou diplomaticamente e onde estabeleceu relações. Existem também estudiosos da língua e cultura portuguesa que ao debruçarem-se pela época moderna encontraram a figura de Vieira e ele é um gigante – quando o encontramos não podemos passar por cima.

AE - Porque é que desta vez se vai terminar a publicação da obra?
JEF - A obra do padre António Vieira é colossal. Muitos autores escreveram, mas ele, um autor do século XVII, teve fortuna de a sua obra ter sobrevivido a terramotos, a incêndios ou a naufrágios.
Encontrava-se manuscrita em condições difíceis e muito dispersa em bibliotecas e arquivos.  Por isso constituímos uma equipa luso brasileira com grandes especialistas formados em ciências literárias, paleografia, latim, história, teologia, filosofia, direito. Para além de uma equipa de especialistas é também preciso uma equipa permanente de investigadores – temos trabalhado com quase 20 investigadores – que sabem latim e paleografia, disciplinas não muito abundantes nas nossas universidades e que estão a trabalhar a tempo inteiro.

AE - Uma equipa mais portuguesa ou mais brasileira?
É mais portuguesa porque a iniciativa desta vez foi portuguesa. A liderança e o conceito da obra é toda portuguesa, naturalmente que em diálogo com os convidados brasileiros que integram a equipa.
O padre António Vieira teve a sorte de criar em torno da sua obra aquilo que eu chamo um pequeno exército de especialistas de várias áreas, não só admiradores como de estudiosos. Desde os anos 60 muitas teses e estudos académicos e livros foram produzidos e neste momento não faltam especialistas. É preciso é congregá-los, pô-los a dialogar e que aceitem trabalhar em equipa.
Num diálogo longo, que se estendeu por vários anos, conseguimos unir essa equipa. Mas faltava um financiamento consistente para que, de forma planificada, estabelecêssemos um calendário que nos permitisse publicar em tempo útil. Faltava um terceiro elemento: uma editora que se abalançasse a publicar a obra toda. Não é fácil num ano de crise como o nosso editar a obra completa do padre António Vieira apesar de ser um imperador da língua portuguesa.
Desde 2000 que ando com este projeto e só no final de 2011/2012 é que se criaram condições. Começámos com poucos apoios, migalhas, e no final do ano passado eu pensei que o projeto caísse por terra. Mas a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através do provedor Pedro Santana Lopes, foi sensível ao projeto e percebeu que para se fazer de forma total era necessário um financiamento suficiente. Daí que foi prometido um financiamento faseado à medida que formos fazendo o projeto e a apresentação de resultados.

AE - Quando é que preveem ter o projeto concluído?
O projeto intitula-se «Vieira global» e tem três fases. O financiamento que está prometido garante a equipa de investigação, não chega para pagar aos especialistas.
Até ao final de 2014 publicaremos os 30 volumes, ou seja, a totalidade da obra o que do ponto de vista da história da edição em Portugal será o maior projeto desta natureza. É colossal fazer isto mas estamos empenhados.
Na segunda fase vamos preparar um dicionário multimédia impresso e on line dirigido às escolas e universidades para que o seu pensamento e a sua obra e continuar a formar o escrever e falar bem português. Na terceira fase pretendemos construir uma seleta, de 300 a 400 páginas dos melhores textos de Vieira e publicá-los em dez línguas – desde o mandarim, ao inglês, italiano, russo, espanhol, alemão. Há tradutores, falta o financiamento.
Queremos internacionalizar o que de melhor temos na nossa cultura e literatura. Os lusófonos são diligentes em importar o que os pensadores e escritores fazem lá fora mas somos relaxados em exportar o que é nosso. Se temos uma literatura que é muito admirada por quem estuda a língua portuguesa e se fosse traduzido também poderia ser admirado por aqueles que nem a nossa língua conhecem.
O objetivo é exportar o melhor pensamento e a melhor literatura produzida no século XVII.

AE - Há leitores no Portugal e no Brasil para a obra do padre António Vieira?
JEF - Sem dúvida. Vai haver uma primeira edição de 10 mil exemplares da coleção dos 30 volumes. Eu estudo o Vieira desde 1994. Publiquei quatro livros e percebi que todas as publicações, sejam livros ou ensaios, suscitam sempre interesse.
Vieira não é um autor fácil mas as pessoas têm ideia de que é um grande autor. O primeiro a reconhecer foi Fernando Pessoa, mas Saramago disse que na sua cabeceira tinha Vieira e que esporadicamente gostava de o ler para se banhar e inspirar na sua escrita.
O que é extraordinário no padre António Vieira, para além de escritor notável, foi o facto de ter elevado a língua portuguesa a uma perfeição nunca antes vista. Muitos escritores lusófonos do século XX afirmam Vieira como uma escola de arte de bem dizer e escrever português. Por isso acredito que não só do ponto de vista da escrita da língua, ele tem um pensamento de grande atualidade.
Vieira é uma figura anticrise e por isso é interessante publicar o padre António Vieira em altura de crise. Ele viveu num tempo e teve uma intervenção poderosa no contexto da restauração portuguesa. Ele é uma figura sedutora e extraordinária daquele tempo.
Não faltavam pregadores naquele tempo povoado de ordens religiosas onde qualquer um queria ter o estatuto mais elevado e ser pregador do rei. Vieira prega e encanta, mas não se fica no seu estatuto. Revela-se empreendedor e apoio o rei e o Estado quando Portugal se debateu com as sucessivas invasões de Espanha e com as tentativas da chamada potências emergentes de ficar com o império ultramarino.
Vieira através da sua palavra e dos projetos de reforma económica e social, das suas viagens a França e Holanda tenta estabelecer alianças e fazer vingar o reconhecimento de Portugal, trazendo ideias novas das viagens que faz pela Europa.
É um homem que intervém e propõe reformas importantes e tenta, mesmo através dos seus projetos utópicos para Portugal e para o mundo, reforçar a vontade coletiva acreditando e fazendo acreditar que Portugal era possível.

AE - Essas caraterísticas estão presentes em toda a escrita de Vieira ou a poesia e o teatro, facetas menos conhecidas, revelam outras tendências?
JEF - O pensamento utópico e o projeto de cidadania no futuro que Vieira apresentou nas suas obras idealizando um mundo novo, uma Europa nova, uma cristandade unida onde Portugal seria o líder desse mundo novo está presente em toda a obra, no entanto ela está mais presente no que é o género literário profético, apesar de presentes nos sermões e nas cartas.
Na coleção temos aquilo que eu considero ser a obra menos conhecida de Vieira e desconhecida para muitos especialistas que são a produção poética e dramatúrgica que se encontrava dispersa e manuscrita. Assim fechamos de forma perfeita o ramalhete.

AE - E há a certeza de que não haverá outros manuscritos de Vieira?
JEF - Como dizemos na introdução geral, esta obra será completa até ao momento em que o investigador encontrar um documento novo, certificado com o selo de Vieira que não se encontre nesta obra.
Mas isso acontece com todas as obras. Nós publicamo-la como completa fazendo o que costumamos fazer: percorrendo as bibliotecas, arquivos onde suspeitamos que há escritos de Vieira ou atribuídos a ele. Contactámos investigadores, tínhamos muitos estudos feitos com indícios para fazer um mapa de investigação.
Podemos dizer que o que vamos publicar é o que sabemos que existe do Vieira. Sabemos que há dois ou três manuscritos que escreveu, um estudo exegético sobre o Cântico dos Cânticos, uma arte de pregar. Muitos estudiosos já procuraram esses escritos no século XIX mas acredita-se que essas obras se perderam.
O padre António Vieira é um símbolo da cultura luso-brasileira, não só portuguesa.
Por isso é significativo que a equipa seja luso-brasileira. Eu considero que Vieira é uma figura ponte entre Portugal e o Brasil, pois nos dois países ele é uma figura fundante da nossa literatura. Por isso nos aproxima e une a história das culturas e do melhor pensamento.

AE - Como especialista nos escritos do padre António Vieira, qual a vertente dele que mais aprecia?
JEF - Entre estudiosos há uma anedota que diz que Vieira é como a cachaça: quando se olha para ele pela primeira vez, como na escola, diz-se «que horror, chato e pesado». De facto é pesado, mas depois de entrar ganha-se gosto e não se deixa mais porque ficamos viciados.
Eu gosto de Vieira no seu todo. Comecei por fazer uma tese académica sobre o pensamento utópico e de facto sou fascinado porque ele pensou um mundo novo e projetou o mundo com uma visão extraordinária – um mundo ecuménico, fraterno, onde os direitos humanos seriam praticados. Ele foi o percursor de uma consciência dos direitos humanos que o século XVIII viria a consagrar.
Foi pelos sermões que ele ficou conhecido mas o próprio Vieira considerava a obra profética a sua obra magna. Ele pensou Portugal e a sua relação com a Europa e com o mundo e numa humanidade nova, a cidadania do futuro. Nos escritos proféticos o padre António Vieira abraça a humanidade toda e aqui revela-se um pensador universal.

A entrevista ao historiador José Eduardo Franco foi realizada em parceria com o jornal Diário de Notícias.
Fonte: Agência Ecclesia

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