Antigas moradoras diante da vista da Sé
Acervo pessoal / Divulagação
Houve um tempo em que nos atínhamos a fatos maiores que a vida para poder escrever a história. Esse tempo, não muito distante, é passado. O minúsculo, o sem nome, cotidiano, vivido e ordinário podem contar tanto de nós quanto os acontecimentos de grandeza épica capazes de figurar na moldura nos museus tradicionais. "O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime,(...) O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior (...) É uma história a caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada (...) ", diz o historiador e sociólogo francês Michel de Certeau, autor do já clássico A invenção do Cotidiano (1996). Inspirado, ainda que não conscientemente, em posições como a de Certeau, mais um precioso documento sobre a importância do que nos é corriqueiro para a compreensão de quem somos (ou podemos ser) é lançado. Depois de 15 meses de trabalho contínuo, será lançado hoje à noite, na Sociedade Beneficente de Artistas e Operários de Olinda (SBAOO), o livro Olinda - Memórias fotográficas.
O livro é um grande apanhado do acervo pessoal de fotografias dos moradores do Sítio Histórico de Olinda do começo do século 20 até 1982. “Estabelecemos como critério esse ano, porque foi o ano em que Olinda foi reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela Unesco e entrou numa dinâmica internacional de turismo que afetou a sociabilidade na cidade”, diz o arquiteto Lula Marcondes, um dos idealizadores e executores do livro, ao lado de Chico Rocha e Bruno Lima, integrantes do escritório O Norte - Oficina de Criação, responsável geral pelo projeto, realizado com fomento do Funcultura.
“Hoje, em processo de transição para uma outra qualidade de memória coletiva no Sítio Histórico de Olinda: uma memória globalizada, mais impessoal e cosmopolita; mais urbana e mais volátil. Esse, talvez, seja um processo irreversível, até mesmo natural, para um núcleo histórico pequeno e limitado, como é o caso do centro histórico de Olinda, inserido na Região Metropolitana do Recife”, diz Marcondes. “A parte histórica de Olinda é uma espécie de ilha, mas profundamente afetada pelas dinâmicas urbanas do Recife e da Cidade Alta”, continua.
Morador do Sítio Histórico desde que nasceu, Lula recorreu à rede de amigos e parentes de amigos e parentes para conseguir as fotos. “Não foi tão simples, no começo, muita gente teve receio em nos ceder as imagens”, diz ele que, com uma equipe multidisciplinar, conseguiu, ao final, reunir mais de mil imagens. “Depois de reunirmos as fotos, analisamos o que tínhamos em mãos e fomos e montamos uma narrativa”, diz Marcondes. Ao final, 105 imagens acabaram por integrar o livro.
Coube a Mateus Sá a consultoria em fotografia. “Mas evitamos dar qualquer tratamento às imagens, quisemos mantar as machas, ranhuras e outras marcas do tempo”, ele diz. Reunidas por um criterioso olhar curatorial, as imagens em conjunto adquirem o poder de comunicação de uma obra de arte: o de pinçar objetos de sua função cotidiana e, estetizados, transformá-los em objetos de reflexão. São três os eixos narrativos: paisagens, indivíduos e experiências culturais vinculadas ao convívio e à celebração de ritos e festejos coletivos.
Durante a compilação de imagens, o conjunto de imagens relativa à natureza de Olinda chamou a atenção especial dos realizadores. “Pudemos ver como a natureza da cidade se degradou”, diz ele, numa referência, principalmente, à chamada Barreira, área por trás do bairro do Bonsucesso de onde saiu parte do barro para as construções de Olinda, hoje ocupada por construções desordenadas. “O tratamento paisagístico da cidade também era outro”, diz ele, numa referência às muitas imagens de moiçolas posando, como se num rito de passagem tácito na cidade de décadas passadas, diante do lago já aterrado no conjunto das praças do Carmo e da Preguiça com árvores cuidadosamente podadas.
Ao longo das páginas, vemos o artista Bajado pintando seus murais na cidade - todos já apagados. Também cenas de antigos Carnavais e impressionantes imagens das praias de Olinda com a prática de um recente hábito social: apenas no começo do século 20, o banho de mar começaria a ser instituído como comportamento público. Um hábito que, aliás, atraía veranistas ilustres para as então límpidas e espaçadas águas do mar de Olinda (hoje quase todas impróprias ao banho): nos anos de meninice, Nelson Rodrigues e Clarice Lispector gastavam suas férias de verão na Marim dos Caetés.
Com tantas imagens de fora da edição, um outro livro pode ser montado. “Estamos ainda analisando que narrativas podemos montar”, diz Lula Marcondes. A memória de Olinda agradece.
Olinda - Memórias fotográficas (O Norte, Oficina de Criação). Lançamento hoje, às 19h, na Sociedade Beneficente de Artistas e Operários de Olinda (SBAOO). Rua Bernardo Vieira de Melo, 127, próximo ao Mercado da Ribeira.
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