No começo, fizeram-se as trevas. Um obscurantismo
democrático só comparável ao da ditadura militar se abateu sobre a sociedade
brasileira em forma de tentativa dos seus setores mais abastados de imporem a
todos uma adesão incondicional à manutenção de privilégios injustos a um seu
setor literalmente microscópico.
Por Eduardo Guimarães*
Apesar de a política pública (mal chamada) de cotas
"raciais" ter surgido em universidades estaduais do Rio de Janeiro
alguns anos antes, o que desencadeou uma interminável cruzada midiática contra
si foi a lei federal 4.876/2003, instituída ao fim do primeiro ano do governo
Lula.
A elite étnica, econômica e regional que sempre mandou e
demandou no país começou a ver, ali, o embrião do que seria aquele governo, ou
seja, um governo que, pela primeira vez na história, ergueria dezenas de
milhões da pobreza em que haviam sido esquecidos e os tornaria parte de uma
nova "classe média" que, em poucos anos, abrigaria a maioria deste
povo.
O Brasil, então, em um mundo em que há cerca de duas
centenas de nações ocupava desonrosa posição entre os cinco mais socialmente
injustos, perdendo em injustiça social e concentração de renda somente para
países miseráveis da África e da América Latina.
Desde a redemocratização, obtida por fadiga de material
após duas décadas de uma ditadura militar em que a desigualdade econômica,
étnica e regional se aprofundara como nunca antes, tal herança de exclusão
social que conflagrara o país e o colocara em virtual guerra civil não refluíra
praticamente nada.
A partir de 2003, porém, essa "herança maldita"
começaria a ser combatida.
Um dos fatores que, em poucos anos, criaria uma nova
"classe média", por estranho que pareça em um país com Educação ainda
tão frágil foi justamente o acesso dos mais pobres ao ensino. E, sobretudo, ao
ensino universitário, até então reservado, quase que exclusivamente, aos
brancos de classe média e alta do Sul e do Sudeste.
Fazer faculdade, no Brasil, em maioria estatística
avassaladora era coisa para filhos de famílias de classes média ou alta, de
ascendência indo-europeia e brancas do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Paraná,
de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, e olhem lá.
Negros e mestiços de negros com outras etnias, em nova
maioria estatística avassaladora estavam condenados a jamais concluírem de fato
os estudos, o que significava nunca chegar ao ensino superior.
O que ocorria no Brasil é que os impostos da maioria pobre
– que, à diferença da micro minoria extremamente abastada, não tem como sonegar
porque paga imposto embutido nos produtos de consumo básico – financiavam os
estudos de ricaços em universidades públicas e gratuitas.
Aos pobres – sobretudo aos negros do Norte e do Nordeste,
onde são maioria esmagadora – não havia opção alguma para chegarem às
universidades estaduais e federais, pois as instituições tinham provas
duríssimas de ingresso para as quais não conseguiam se preparar tendo estudado
em escolas públicas nas quais o ensino veio piorando a passos largos ao longo
do século passado.
Além disso, negros, pobres e nordestinos ou nortistas não
conseguiam adquirir bens culturais de que os brancos de classe média ou alta do
Sul e do Sudeste dispunham à farta, tais como viagens, livros, cinema, teatro
etc.
Vale explicar que os negros, pobres, nordestinos ou
nortistas alijados do ensino superior não residiam apenas em suas regiões
natais, mas muito no Sul e no Sudeste, para onde seus pais e avós haviam
emigrado em meados do século XX em busca de uma vida melhor.
O vestibular tradicional, desde sempre, mantivera uma massa
étnica, econômica e geográfica fora do ensino superior e uma minoria com essas
características opostas dentro dele, pois não havia como jovens tão pobres, em
contingente minimamente aceitável, disputarem com outros jovens tão favorecidos
pela sorte.
Cavalgando, então, um autoengano hipócrita e conveniente
sob todos os aspectos, essa elite que reservara cotas de cem por cento para si
nas universidades atribuía sua vantagem nos vestibulares ao que chamava de
mérito, mas que não passava de sorte de ter nascido em uma família com recursos
financeiros e com a etnia "certa".
Nos meios sociais mais elitistas (nos quais, é bom que se
diga, este que escreve cresceu), o que era dito, a boca pequena, faria o
próprio Hitler corar de vergonha: os negros não chegavam ao ensino superior em
contingente condizente com sua representação no conjunto da sociedade porque
eram intelectualmente inferiores.
Nunca me canso de contar essa história: certa vez, em uma
festa em um bairro dito "nobre" de São Paulo, ao discutir a política
de cotas com racistas empedernidos anotando que com ela, em poucos anos,
surgiriam médicos negros – uma raridade no Brasil –, ouvi de algumas daquelas
pessoas que "jamais se tratariam com um negro".
Eis que a política do governo Lula, inspirada em legislação
inclusiva criada nos Estados Unidos na década de 1960, começaria a reverter
esse quadro, fazendo com que os negros e mestiços chegassem a 2011, oito anos
depois da lei federal 4.876/2003, ocupando mais do que o triplo das vagas nas
universidades que conseguiam até 2003.
Estava ameaçada a hegemonia branca, de classe média e alta
e do Sul e do Sudeste no ensino superior. O instrumento que servira,
historicamente, para perpetuar as desigualdades sociais mastodônticas de que
padece o Brasil agora corria o risco de ser anulado, pois o fator financeiro
deixava de ser preponderante para garantir acesso ao ensino superior público,
sabidamente o de maior qualidade.
Além disso, para os eleitos pela sorte que não gostavam
tanto dos estudos havia as universidades particulares, menos concorridas, mas,
ainda assim, exclusivas para a elite, pois custavam caro.
Para essa questão do ensino superior privado, o governo
federal criou o Prouni, que financiaria estudantes que não conseguissem chegar
à universidade pública mesmo com cotas "raciais", mas essa é outra
história. Aqui se fala das cotas para negros.
Ameaçada a hegemonia branca no ensino superior, mecanismos
multibilionários foram acionados para matar, no nascedouro, uma política
pública que, acima de qualquer outra, tinha capacidade para pôr fim àquela
hegemonia ao menos no longo prazo. A comunicação social foi usada para esse
fim.
De 2003 em diante, jornais, televisões, revistas, livros,
filmes e, acima de tudo, um discurso social opressor foram usados para triturar
a ideia de cotas "raciais". Não existia, na grande mídia, espaço para
contestação. Criou-se, então, um discurso que invertia os fatos: as cotas que
beneficiavam jovens negros e pobres seriam "racistas" (!?).
Um dos primeiros discursos que se levantou foi o do
"prejuízo acadêmico". A tese era muito simples: os estudantes negros
que estariam sendo beneficiados não teriam capacidade para frequentar uma
universidade "de elite" e, assim, rebaixariam a produção acadêmica e
a qualidade dos formandos.
Com o passar dos anos, a tese se mostraria uma falácia.
Nunca se conseguiu detectar o tal "prejuízo acadêmico". Muito pelo
contrário. Além de desistirem muito menos dos cursos nos quais ingressavam, os
negros pobres se equipararam ou até superaram as notas dos brancos ricos.
Apesar do discurso massacrante contra as cotas
"raciais", porém, mostrou-se surpreendente o entendimento da sociedade
de que corrigiam uma situação infame sob todos os aspectos.
Poucas pesquisas de opinião foram feitas para aferir a
reação da sociedade ao discurso sobre o caráter supostamente
"racista" ou depressor qualitativo das cotas para negros. As poucas
que foram feitas, foram abafadas. Agora, porém, após anos sem investigarem
oficialmente a questão, surge uma nova pesquisa sobre o tema.
Pesquisa Ibope feita para o jornal O Estado de São Paulo
entre os dias 17 e 21 de janeiro de 2013 revelou que quase dois em cada três
brasileiros (62% da população) são a favor dos três tipos de cotas em
universidades públicas – étnicas, econômicas e para egressos da escola pública.
O apoio a cotas para negros, porém, é maior que o apoio aos
três tipos de cotas. Enquanto 62% querem todas as cotas, 64% querem cotas só
para negros. Os que aceitam que só existam cotas por critérios financeiros ou
de origem escolar, porém, superam todos os grupos, atingindo 77%.
Isso, porém, não significa que esses 77% sejam todos contra
as cotas "raciais". A diferença para os 64% que exigem cotas para
negros mas aceita se forem só para pobres ou egressos da escola pública é de
escassos 13 pontos percentuais.
Ser exclusivamente contra qualquer tipo de cota, porém, é o
ponto mais interessante. São Pessoas que ainda acreditam na balela de um
"mérito" que tem cor da pele, região do país e nível de renda e que
congrega míseros 16% da população.
E note-se que, apesar de amplamente minoritária, essa é a
posição que predominou na mídia e entre partidos políticos de oposição durante
muito tempo.
Aos poucos, porém, pesquisas não oficiais – ou seja, que
não foram divulgadas – foram revelando a partidos como PSDB, DEM, PPS e PSOL e
até à mídia (todos, inicialmente, contrários a cotas "raciais") que,
se continuassem sendo contra qualquer tipo de cota, mergulhariam em um
isolamento ainda maior.
Um dos efeitos disso foi a adoção recentíssima pelo governo
tucano de São Paulo de uma política canhestra de cotas que impõe mais tempo de
estudo pré-universitário a jovens negros e pobres para supostaente poderem
chegar "ao nível" dos brancos ricos, o que as outras experiências com
a política afirmativa mostraram ser desnecessário.
O fato é que o tsunami comunicacional que se abateu sobre o
país tentando convencê-lo de que seria "racista" uma política pública
que combateria a situação absurda de um país de maioria negra (segundo o IBGE)
praticamente não ter negros no ensino superior, fracassou fragorosamente.
Chega a ser surpreendente que 64% dos brasileiros apoiem
uma política pública que foi tão demonizada e que a mídia até hoje impede que
seja defendida equitativamente. Significa que esse contingente esmagador da
sociedade teve contato com a tese da elite "racial" e a considerou
uma falácia.
O país que a recente pesquisa Ibope revela é um país muito
diferente daquele que é apresentado como sendo o Brasil, um país de alienados
que não entendem os mecanismos que foram usados para criar tanta injustiça
social.
O Brasil, pois, mostra-se muito atento a políticas contra a
desigualdade e, eleição após eleição, deixa ver que está decidido a votar em
causa própria, ou seja, em políticos e partidos que, por atos e ações,
reconhecem que há um sistema de exclusão social erigido para manter a secular
iniquidade brasileira.
*Eduardo Guimarães é blogueiro e do Movimento dos sem
mídia.
Fonte: Vermelho
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