Artefato estava em uma capela e
tem características que combinam com a cruz desaparecida de São Miguel das
Missões
Cruz encontrada em Camaquã pode
ter sido de igreja das Missões Bruno Alencastro/Agencia RBS
O téologo Édison Huttner mede a
cruz, de 2m24cm de altura por 1m11cm
Foto: Bruno Alencastro /
Agencia RBS
Bruno Felin
bruno.felin@zerohora.com.br
Da arte espanhola de trabalhar
com ferro surgiu uma cruz que ocupou o campanário da Igreja de São Miguel das
Missões, edificada no século 18. Trata-se de um objeto dado como perdido por
historiadores e arqueólogos e que, talvez, agora tenha reaparecido. Estamos
falando de um artefato de 26,4 quilos encontrado em Camaquã, na região sul do
Estado.
O renascimento da cruz que
seria de São Miguel se deve a Édison Hüttner, doutor em teologia e coordenador
do Grupo de Pesquisa sobre Arte Sacra Jesuítico-Guarani da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Em 2010, durante uma visita ao
pai, que mora na cidade (distante mais de 600 quilômetros das ruínas
missioneiras) e a ajuda do irmão Éder Abreu Hüttner, o artefato enterrado em
uma gruta chamou a atenção do pesquisador: era imponente, de ferro, tinha
grandes dimensões e escondia um segredo para olhos desatentos — um brasão e a
inscrição SPHN. Iniciou-se, ali, um trabalho de pesquisa que duraria quase três
anos. Com buscas inclusive em arquivos secretos do Vaticano, ele reconstituiu
os possíveis passos daquela que pode ser a mais recente descoberta sobre o
único patrimônio da humanidade em solo gaúcho.
—Eu já tinha o olho treinado,
vi que não era algo normal — lembra Hüttner.
Ao perceber que a inscrição
encravada no ferro era um símbolo do império espanhol, a suspeita ganhou corpo,
pois tinha a mesma grafia da época em que jesuítas e índios conviveram na
região. Foi uma litografia, uma imagem de 1846, realizada pelo médico
pesquisador francês Alfred Demersay, a responsável por revelar a estética da
igreja (erguida a partir de 1735) e, também, da cruz.
Sem ela, provavelmente não
seria possível saber como era esse símbolo encravado no campanário da torre.
Pelo registro, a cruz aparece inclinada, provavelmente devido a um raio,
visualmente igual à que estava em uma gruta de Camaquã e foi retirada por
Huttner neste ano, em parceria com a prefeitura local.
Para Klaus Hilbert, coordenador
do laboratório de arqueologia da PUCRS, o fato de a cruz ter passado quase 200 anos
sem ser descoberta se dá pela falta de informação e pelo material.
– É uma coisa de olhar (a cruz)
e não entender. A litografia está publicada há muito tempo, mas ninguém deu
muita importância para a cruz, porque esses objetos de ferro são recicláveis,
eram um bem muito valioso. A cruz não entrou nesse processo justamente pela
importância simbólica. É uma parte do tesouro jesuítico — afirma.
Ao medir as proporções da cruz
na litografia e calcular o tamanho das ruínas da torre, em São Miguel das Missões,
Hüttner obteve mais um indício positivo: além do formato, o tamanho — 2m24cm de
altura por 1m11cm de largura — condizia com o registrado por Demersay.
— Neste momento, percebi que
tinha fechado tudo. As medidas eram semelhantes, assim como todas outras
características — emociona-se Hüttner.
O símbolo de fé foi
provavelmente montado por índios, sob supervisão de jesuítas. Como havia uma
rota de erva-mate entre a região das Missões e Camaquã, a cruz pode ter sido
levada até a cidade por carreteiros. Foi parar dentro da gruta que fica na
parte antiga, sob a inscrição "uma graça alcançada". Um símbolo de fé
que viajou pelo imaginário de gerações de gaúchos e, se tiver a autenticidade
confirmada, pode se tornar mais um patrimônio da humanidade.
Iphan ainda não avaliou a
autenticidade do artefato
Para Eduardo Hahn, que assume o
cargo de superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan) no lugar de Ana Meira, ainda será preciso comprovar a
autenticidade da cruz por um restaurador do órgão.
— Se comprovada, é uma
descoberta importante. A situação será analisada e iremos decidir se há um
local apropriado em Camaquã (onde foi registrada como patrimônio do município,
há 15 dias). Se não houver, (a cruz) poderá ir para o Museu das Missões, por
exemplo — explica.
"Tem tudo para ser
ela", diz técnica que fez análise química
A coordenadora do Centro de
Microscopia e Microanálise da PUCRS, Berenice Anina Dedavid, analisou amostras
da cruz e as comparou com materiais encontrados junto aos fornos da redução de
São João Batista. A técnica foi uma microanálise por raio X característico, em
um microscópio eletrônico de varredura:
— Tem tudo para ser ela. O
material da cruz é semelhante aos elementos químicos dos materiais da região.
Além do ferro e do carbono, outros elementos como cálcio e manganês conferem.
MOTIVOS PARA ACREDITAR
Seis indícios levam a crer que
a cruz pertencia à Igreja de São Miguel das Missões:
1 — A última imagem de cruz na
Igreja de São Miguel é uma litografia de Alfred Demersay, de 1846. A cruz
encontrada em Camaquã tem o mesmo formato da vista na imagem ao lado, com os
pontos cardeais.
2 — A cruz de Camaquã tem uma
marca do império espanhol (a inscrição SPHN), que foi gravada no momento em que
o ferro foi forjado. A tipografia é semelhante à da época.
3 — Há sincronia entre as
medidas da torre da Igreja de São Miguel em relação à cruz e à orbe (a
"bola" que fica abaixo das cruzes de todas as igrejas). Ou seja: as
medidas batem entre a cruz de Camaquã e as imagens da igreja.
4 — A cruz encontrada tem
estética de campanário, isto é, daquelas que ficam em topos de torres de
igrejas.
5 — Após análises, não houve
contradição entre amostras de ferro fundido e aço encontradas na região das
missões e o ferro da cruz de Camaquã.
6 — Existiu uma rota comercial,
principalmente de erva-mate, entre as regiões de Camaquã e das missões
jesuíticas. Por isso, pode-se acreditar que a cruz foi encontrada nas ruínas e
levada até Camaquã, onde foi enterrada.
ENTREVISTA > Klaus Hilbert
Arqueólogo e coordenador do laboratório de arqueologia da PUCRS
"É mais uma peça em um
quebra-cabeça"
Arqueólogo e coordenador do
laboratório de arqueologia da PUCRS, Klaus Hilbert conversou com ZH sobre a
descoberta da cruz.
Zero Hora — O que falta para se
ter certeza?
Klaus Hilbert — Talvez falte
uma análise mais aprofundada do ferro. Cada pedaço de metal tem uma espécie de
impressão digital.
ZH — Qual a comparação com
outras descobertas recentes?
Hilbert — Existem muitas pesquisas
sobre as Missões. A descoberta da cruz é mais uma peça em um quebra-cabeça.
ZH — Qual a importância
histórica de uma possível reaparição da cruz?
Hilbert — Perdeu-se a cruz em
algum momento e os arqueólogos e arquitetos não foram correr atrás, não se
deram conta que esse material do contexto mais sagrado tem uma importância para
a população. Ela terminou em uma pequena capelinha, como um gesto de oferenda e
agradecimento, e ninguém deu importância para ela.
ZH — O senhor pode falar desse
possível caminho percorrido pela cruz?
Hilbert — A gente acredita que
essa cruz, quando ela caiu lá de cima, estava junto com uma bola de pedra, a
orbe, que representa o globo. Essa peça de arenito está lá em São Miguel ainda.
É interessante como a cruz não foi cortada em pedaços para fazer uma enxada, um
martelo, uma faca. Os tropeiros e a rota da erva-mate passam por lá. Essa cruz
deve ter sido levada embora por uma dessas pessoas.
ZH — Pode haver uma nova leva
de descobertas?
Hilbert — Sim, pensava-se até um
certo tempo que o assunto estava esgotado. Nas décadas de 1940 e 1950, muito
esforço foi feito para resgatar o estatuário. Muitas (peças) até saíram do país
como antiguidades. Fizeram um esforço para reunir os estatuários, estão no
museu em São Miguel. Chegava-se até o ponto em que se tinha resgatado tudo, o
sino, parte da estatuária. Faltava a cruz.
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