sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Cruz encontrada em Camaquã pode ter sido de igreja das Missões


Artefato estava em uma capela e tem características que combinam com a cruz desaparecida de São Miguel das Missões
Cruz encontrada em Camaquã pode ter sido de igreja das Missões Bruno Alencastro/Agencia RBS
O téologo Édison Huttner mede a cruz, de 2m24cm de altura por 1m11cm
Foto: Bruno Alencastro / Agencia RBS
Bruno Felin
bruno.felin@zerohora.com.br
Da arte espanhola de trabalhar com ferro surgiu uma cruz que ocupou o campanário da Igreja de São Miguel das Missões, edificada no século 18. Trata-se de um objeto dado como perdido por historiadores e arqueólogos e que, talvez, agora tenha reaparecido. Estamos falando de um artefato de 26,4 quilos encontrado em Camaquã, na região sul do Estado.

O renascimento da cruz que seria de São Miguel se deve a Édison Hüttner, doutor em teologia e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Arte Sacra Jesuítico-Guarani da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Em 2010, durante uma visita ao pai, que mora na cidade (distante mais de 600 quilômetros das ruínas missioneiras) e a ajuda do irmão Éder Abreu Hüttner, o artefato enterrado em uma gruta chamou a atenção do pesquisador: era imponente, de ferro, tinha grandes dimensões e escondia um segredo para olhos desatentos — um brasão e a inscrição SPHN. Iniciou-se, ali, um trabalho de pesquisa que duraria quase três anos. Com buscas inclusive em arquivos secretos do Vaticano, ele reconstituiu os possíveis passos daquela que pode ser a mais recente descoberta sobre o único patrimônio da humanidade em solo gaúcho.

—Eu já tinha o olho treinado, vi que não era algo normal — lembra Hüttner.

Ao perceber que a inscrição encravada no ferro era um símbolo do império espanhol, a suspeita ganhou corpo, pois tinha a mesma grafia da época em que jesuítas e índios conviveram na região. Foi uma litografia, uma imagem de 1846, realizada pelo médico pesquisador francês Alfred Demersay, a responsável por revelar a estética da igreja (erguida a partir de 1735) e, também, da cruz.

Sem ela, provavelmente não seria possível saber como era esse símbolo encravado no campanário da torre. Pelo registro, a cruz aparece inclinada, provavelmente devido a um raio, visualmente igual à que estava em uma gruta de Camaquã e foi retirada por Huttner neste ano, em parceria com a prefeitura local.

Para Klaus Hilbert, coordenador do laboratório de arqueologia da PUCRS, o fato de a cruz ter passado quase 200 anos sem ser descoberta se dá pela falta de informação e pelo material.

– É uma coisa de olhar (a cruz) e não entender. A litografia está publicada há muito tempo, mas ninguém deu muita importância para a cruz, porque esses objetos de ferro são recicláveis, eram um bem muito valioso. A cruz não entrou nesse processo justamente pela importância simbólica. É uma parte do tesouro jesuítico — afirma.

Ao medir as proporções da cruz na litografia e calcular o tamanho das ruínas da torre, em São Miguel das Missões, Hüttner obteve mais um indício positivo: além do formato, o tamanho — 2m24cm de altura por 1m11cm de largura — condizia com o registrado por Demersay.

— Neste momento, percebi que tinha fechado tudo. As medidas eram semelhantes, assim como todas outras características — emociona-se Hüttner.

O símbolo de fé foi provavelmente montado por índios, sob supervisão de jesuítas. Como havia uma rota de erva-mate entre a região das Missões e Camaquã, a cruz pode ter sido levada até a cidade por carreteiros. Foi parar dentro da gruta que fica na parte antiga, sob a inscrição "uma graça alcançada". Um símbolo de fé que viajou pelo imaginário de gerações de gaúchos e, se tiver a autenticidade confirmada, pode se tornar mais um patrimônio da humanidade.

Iphan ainda não avaliou a autenticidade do artefato

Para Eduardo Hahn, que assume o cargo de superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no lugar de Ana Meira, ainda será preciso comprovar a autenticidade da cruz por um restaurador do órgão.

— Se comprovada, é uma descoberta importante. A situação será analisada e iremos decidir se há um local apropriado em Camaquã (onde foi registrada como patrimônio do município, há 15 dias). Se não houver, (a cruz) poderá ir para o Museu das Missões, por exemplo — explica.

"Tem tudo para ser ela", diz técnica que fez análise química

A coordenadora do Centro de Microscopia e Microanálise da PUCRS, Berenice Anina Dedavid, analisou amostras da cruz e as comparou com materiais encontrados junto aos fornos da redução de São João Batista. A técnica foi uma microanálise por raio X característico, em um microscópio eletrônico de varredura:

— Tem tudo para ser ela. O material da cruz é semelhante aos elementos químicos dos materiais da região. Além do ferro e do carbono, outros elementos como cálcio e manganês conferem.



MOTIVOS PARA ACREDITAR

Seis indícios levam a crer que a cruz pertencia à Igreja de São Miguel das Missões:

1 — A última imagem de cruz na Igreja de São Miguel é uma litografia de Alfred Demersay, de 1846. A cruz encontrada em Camaquã tem o mesmo formato da vista na imagem ao lado, com os pontos cardeais.

2 — A cruz de Camaquã tem uma marca do império espanhol (a inscrição SPHN), que foi gravada no momento em que o ferro foi forjado. A tipografia é semelhante à da época.

3 — Há sincronia entre as medidas da torre da Igreja de São Miguel em relação à cruz e à orbe (a "bola" que fica abaixo das cruzes de todas as igrejas). Ou seja: as medidas batem entre a cruz de Camaquã e as imagens da igreja.

4 — A cruz encontrada tem estética de campanário, isto é, daquelas que ficam em topos de torres de igrejas.

5 — Após análises, não houve contradição entre amostras de ferro fundido e aço encontradas na região das missões e o ferro da cruz de Camaquã.

6 — Existiu uma rota comercial, principalmente de erva-mate, entre as regiões de Camaquã e das missões jesuíticas. Por isso, pode-se acreditar que a cruz foi encontrada nas ruínas e levada até Camaquã, onde foi enterrada.



ENTREVISTA > Klaus Hilbert Arqueólogo e coordenador do laboratório de arqueologia da PUCRS

"É mais uma peça em um quebra-cabeça"

Arqueólogo e coordenador do laboratório de arqueologia da PUCRS, Klaus Hilbert conversou com ZH sobre a descoberta da cruz.

Zero Hora — O que falta para se ter certeza?

Klaus Hilbert — Talvez falte uma análise mais aprofundada do ferro. Cada pedaço de metal tem uma espécie de impressão digital.

ZH — Qual a comparação com outras descobertas recentes?

Hilbert — Existem muitas pesquisas sobre as Missões. A descoberta da cruz é mais uma peça em um quebra-cabeça.

ZH — Qual a importância histórica de uma possível reaparição da cruz?

Hilbert — Perdeu-se a cruz em algum momento e os arqueólogos e arquitetos não foram correr atrás, não se deram conta que esse material do contexto mais sagrado tem uma importância para a população. Ela terminou em uma pequena capelinha, como um gesto de oferenda e agradecimento, e ninguém deu importância para ela.

ZH — O senhor pode falar desse possível caminho percorrido pela cruz?

Hilbert — A gente acredita que essa cruz, quando ela caiu lá de cima, estava junto com uma bola de pedra, a orbe, que representa o globo. Essa peça de arenito está lá em São Miguel ainda. É interessante como a cruz não foi cortada em pedaços para fazer uma enxada, um martelo, uma faca. Os tropeiros e a rota da erva-mate passam por lá. Essa cruz deve ter sido levada embora por uma dessas pessoas.

ZH — Pode haver uma nova leva de descobertas?

Hilbert — Sim, pensava-se até um certo tempo que o assunto estava esgotado. Nas décadas de 1940 e 1950, muito esforço foi feito para resgatar o estatuário. Muitas (peças) até saíram do país como antiguidades. Fizeram um esforço para reunir os estatuários, estão no museu em São Miguel. Chegava-se até o ponto em que se tinha resgatado tudo, o sino, parte da estatuária. Faltava a cruz.



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