Natural de Cachoeira do Sul, Ana Norogrando viveu 30 anos em Santa Maria, onde desenvolveu sua trajetória artística e acadêmica. Seu currículo impressiona pela solidez e aplicação dos conhecimentos adquiridos em várias áreas: desenho, pintura, tecelagem, litografia, xilogravura, escultura, fotografia, vídeo, design, pesquisas com luz e movimento.
E embora seu trabalho não deixe de denotar engajamento político e social, o feminismo de Ana não vem propriamente de uma militância que, se há, está nas suas obras. Estas a designam como uma artista contemporânea sem, contudo, perder o vínculo com a tradição, sobretudo aquela ligada ao trabalho e a cultura italiana que herdou de seus pais, agricultores.
Nesta exposição retrospectiva – que como tal impõe uma cronologia do seu percurso enquanto artista – consta inclusive o quadro “Modelo negra”, óleo sobre tela, feito em 1968, quando, ainda em Cachoeira do Sul, frequentava o curso intensivo de Pintura II, ministrado por Ado Malagoli. Ela aproveitaria a década de 1970 para aprimorar seus estudos e viajar pela Europa para conhecer museus e coleções de arte.
Sua grande guinada profissional foi nos anos 1980, quando começou a trabalhar com fibra metálica. Há nisso uma alusão a persona, ao temperamento feminino: “esse material, aparentemente, quando submetido, de longe, ao olhar, é suave. No entanto, é forte, rígido, resistente, adjetivos que também definem as qualidades da mulher”, salientou Ana Norogrando.
É desse período varias obras desta exposição, como, por exemplo: “Tramas e tensões”, de 1986, e “Peneiras”, de 1987. Esses trabalhos, cuja inspiração é o artesanato milenar com fins utilitários, ganham através de sua intervenção e do material empregado (tela metálica galvanizada, fios de cobre, barra de ferro), um diálogo com o mundo industrial.
Mas foi através de “Vul-crário”, de 1993 – uma escultura cuja forma lembra uma vagina – que Ana Norogrando produziu o seu trabalho mais polêmico, cuja visualização provoca no público um voyeurismo sensual. Contudo, esta obra – constituída de fibra metálica galvanizada, barra de ferro, massa plástica e tinta acrílica, e que faz parte do acervo do MARGS – é puro onirismo, flerte com o surrealismo. E mesmo nestes rincões passa longe do conceito baudelairiano de “épater le bourgeois” (chocar, escandalizar o burguês). Há outras peças cujas formas lembram a genitália feminina e pelos pubianos e que, dependendo da imaginação, assumem ares de portal rumo ao prazer ou nascimento. Ou seja, convidativas e sem dentes que ameacem o falo imaginário de algum machista imprudente. Ana, uma mulher alta e elegante, não é uma feminista “enragée”.
Gaudêncio Fidélis, num dos textos que escreveu no livro homônimo ao da exposição, faz uma analogia entre “Vul-crário” e alguns trabalhos da americana Georgia O’Keeffe (1887-1986): “uma das precursoras de uma abordagem feminista nas artes visuais no contexto americano, tendo realizado pinturas biomórficas abstratas em que a forma do órgão sexual feminino ‘aflora’ literalmente através de imagens de flores voluptuosamente pintadas em grandes formatos”.
As referências não param por aí. Se “Vul-crário” remete as flores de O’Keeffe, e suas vulvas, a instalação “Terra” lembra o trabalho de outro artista norte-americano, Robert Smithson (1938-1973), um dos expoentes da Land Art, famoso por seu “Broken circle”, espiral de terra localizada em Emmen, Holanda, realizada em 1971. Ana, em sua instalação, coletou 33 tipos de terra entre Porto Alegre e Santa Maria, inserindo discos de arados danificados encontrados no interior do estado. Trata-se de uma clara homenagem ao árduo e sofrido (33, idade de Cristo) labor dos camponeses gaúchos e sua religiosa fé na redenção pelo trabalho.
Também é interessante a escultura “Klein, Desomenagem”, de 2013, construída a partir de um manequim, água, anilina e tecido artesanal de seda e algodão. Nela há uma forte alusão ao monocromatismo do artista plástico francês Yves Klein (1928-1962), e sua obsessão pelo azul, levando-o a criar o YKB (Yves Klein Blue). Esse trabalho não deixa de ser um convite ao público a checar, na Fundação Iberê Camargo, algumas obras de Klein que integram a Exposição Zero.
Já a videoinstalação “Interlúdio”, gravada em 2012, mostra imagens dos pores do sol a partir da Ilha dos Marinheiros, Porto Alegre, casa-atelier de Ana Norogrando. Essa incursão de Ana no audiovisual não se circunscreve somente a vídeo-arte. Ela realizou trabalhos que se inserem no gênero documentário, mostrando a natureza e a pobreza das populações ribeirinhas, assim como a necessidade de preservação ambiental do Delta do Jacuí. Isso a levou fazer um trabalho socioeducativo, incluindo oficinas, junto a estas pessoas que são, também, seus vizinhos.
Em seu conjunto, percebe-se que a obra de Ana Norogrando está bem sintonizada com a arte contemporânea. Suas influências têm um toque brasileiro, antropofágico, tão bem representado pela sua escultura “O canibal”, de 2000, que simboliza nossa forma de apreensão e recriação das coisas. Tudo isso torna a visita ao MARGS um ótimo programa para quem estiver ou passar pela capital gaúcha durante este verão.
Francisco Ribeiro
E embora seu trabalho não deixe de denotar engajamento político e social, o feminismo de Ana não vem propriamente de uma militância que, se há, está nas suas obras. Estas a designam como uma artista contemporânea sem, contudo, perder o vínculo com a tradição, sobretudo aquela ligada ao trabalho e a cultura italiana que herdou de seus pais, agricultores.
Nesta exposição retrospectiva – que como tal impõe uma cronologia do seu percurso enquanto artista – consta inclusive o quadro “Modelo negra”, óleo sobre tela, feito em 1968, quando, ainda em Cachoeira do Sul, frequentava o curso intensivo de Pintura II, ministrado por Ado Malagoli. Ela aproveitaria a década de 1970 para aprimorar seus estudos e viajar pela Europa para conhecer museus e coleções de arte.
Sua grande guinada profissional foi nos anos 1980, quando começou a trabalhar com fibra metálica. Há nisso uma alusão a persona, ao temperamento feminino: “esse material, aparentemente, quando submetido, de longe, ao olhar, é suave. No entanto, é forte, rígido, resistente, adjetivos que também definem as qualidades da mulher”, salientou Ana Norogrando.
É desse período varias obras desta exposição, como, por exemplo: “Tramas e tensões”, de 1986, e “Peneiras”, de 1987. Esses trabalhos, cuja inspiração é o artesanato milenar com fins utilitários, ganham através de sua intervenção e do material empregado (tela metálica galvanizada, fios de cobre, barra de ferro), um diálogo com o mundo industrial.
Mas foi através de “Vul-crário”, de 1993 – uma escultura cuja forma lembra uma vagina – que Ana Norogrando produziu o seu trabalho mais polêmico, cuja visualização provoca no público um voyeurismo sensual. Contudo, esta obra – constituída de fibra metálica galvanizada, barra de ferro, massa plástica e tinta acrílica, e que faz parte do acervo do MARGS – é puro onirismo, flerte com o surrealismo. E mesmo nestes rincões passa longe do conceito baudelairiano de “épater le bourgeois” (chocar, escandalizar o burguês). Há outras peças cujas formas lembram a genitália feminina e pelos pubianos e que, dependendo da imaginação, assumem ares de portal rumo ao prazer ou nascimento. Ou seja, convidativas e sem dentes que ameacem o falo imaginário de algum machista imprudente. Ana, uma mulher alta e elegante, não é uma feminista “enragée”.
Gaudêncio Fidélis, num dos textos que escreveu no livro homônimo ao da exposição, faz uma analogia entre “Vul-crário” e alguns trabalhos da americana Georgia O’Keeffe (1887-1986): “uma das precursoras de uma abordagem feminista nas artes visuais no contexto americano, tendo realizado pinturas biomórficas abstratas em que a forma do órgão sexual feminino ‘aflora’ literalmente através de imagens de flores voluptuosamente pintadas em grandes formatos”.
As referências não param por aí. Se “Vul-crário” remete as flores de O’Keeffe, e suas vulvas, a instalação “Terra” lembra o trabalho de outro artista norte-americano, Robert Smithson (1938-1973), um dos expoentes da Land Art, famoso por seu “Broken circle”, espiral de terra localizada em Emmen, Holanda, realizada em 1971. Ana, em sua instalação, coletou 33 tipos de terra entre Porto Alegre e Santa Maria, inserindo discos de arados danificados encontrados no interior do estado. Trata-se de uma clara homenagem ao árduo e sofrido (33, idade de Cristo) labor dos camponeses gaúchos e sua religiosa fé na redenção pelo trabalho.
Também é interessante a escultura “Klein, Desomenagem”, de 2013, construída a partir de um manequim, água, anilina e tecido artesanal de seda e algodão. Nela há uma forte alusão ao monocromatismo do artista plástico francês Yves Klein (1928-1962), e sua obsessão pelo azul, levando-o a criar o YKB (Yves Klein Blue). Esse trabalho não deixa de ser um convite ao público a checar, na Fundação Iberê Camargo, algumas obras de Klein que integram a Exposição Zero.
Já a videoinstalação “Interlúdio”, gravada em 2012, mostra imagens dos pores do sol a partir da Ilha dos Marinheiros, Porto Alegre, casa-atelier de Ana Norogrando. Essa incursão de Ana no audiovisual não se circunscreve somente a vídeo-arte. Ela realizou trabalhos que se inserem no gênero documentário, mostrando a natureza e a pobreza das populações ribeirinhas, assim como a necessidade de preservação ambiental do Delta do Jacuí. Isso a levou fazer um trabalho socioeducativo, incluindo oficinas, junto a estas pessoas que são, também, seus vizinhos.
Em seu conjunto, percebe-se que a obra de Ana Norogrando está bem sintonizada com a arte contemporânea. Suas influências têm um toque brasileiro, antropofágico, tão bem representado pela sua escultura “O canibal”, de 2000, que simboliza nossa forma de apreensão e recriação das coisas. Tudo isso torna a visita ao MARGS um ótimo programa para quem estiver ou passar pela capital gaúcha durante este verão.
Francisco Ribeiro
Ana Norogrando: obras 1968-2013
MARGS (Praça da Alfândega)
De terça a domingo, das 10h às 19h.
Até 23 de março
MARGS (Praça da Alfândega)
De terça a domingo, das 10h às 19h.
Até 23 de março
FONTE: JORNAL JÁ
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