June Locke Arruda* - O Estado de S.Paulo
A mais que centenária Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, instituição reconhecida pelos serviços sociais que prestou e vem prestando até os nossos dias à população que acorre aos seus préstimos - localizada na Rua Cesário Mota, no bairro de Vila Buarque -, possui, no interior de suas instalações, o Museu Engenheiro Augusto Carlos Ferreira Velloso, denominação em homenagem a quem lutou para organizá-lo e preservar os acervos existentes na Santa Casa, instalado no prédio da Provedoria, monumento arquitetônico que lembra outra época da nossa cidade.
No nosso país não há tradição na preservação de equipamentos e utensílios, de quaisquer tipos - quer os domésticos, os científicos ou os industriais, que, quando se tornam obsoletos e acabam substituídos em suas funções próprias, são descartados e destruídos, transformados em resíduos sólidos ou sucata para reaproveitamento de materiais de algum valor.
Os restos aleatórios de equipamentos de uso cotidiano, às vezes, acabam em alguns dos raros museus antropológicos existentes, os quais se preocupam com a preservação de elementos da cultura material e da vida diária das populações que outrora viveram no espaço sob sua área de interesse e/ou seus cuidados.
Existem na cidade numerosos museus de arte, museus históricos, pinacotecas, centros de cultura, centros de memória, mas não temos nenhum museu com equipamentos mecânicos e/ou científicos de época. Os centros de divulgação científica possuem réplicas de equipamentos clássicos, isto é, instrumentos que são reproduções de experiências clássicas, com finalidades didáticas, que até podem ser manuseados pelos visitantes.
O prédio da Provedoria, além da magnífica capela, abriga o museu da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, que mantém em seu espaço não somente itens que podem ser encontrados em outros museus históricos nacionais - acervo documental, escultórico, mobiliário, numismático, pictórico e muitas peças de cultura material -, mas também outros relevantes e exclusivos. É o caso, por exemplo, da chamada "roda dos expostos", lembrança de uma época em que, além da alta mortalidade infantil, pelos poucos recursos existentes, havia muita rejeição de crianças recém-nascidas - quer por problemas econômicos, quer por questões sociais -, que eram entregues ao abrigo da Santa Casa para serem criadas por freiras, desde o século 19 até o desenvolvimento do sistema de amparo social estatal. Há ali também material em diversos suportes pertinente à Revolução de 1932, lembrando o papel relevante do hospital da Santa Casa.
Destacamos como especificidade desse museu a existência de equipamentos científicos completos que permitem acompanhar o desenvolvimento das artes médicas e de seus campos afins.
Numa sala separada do acervo geral, dedicada exclusivamente às artes médicas, estão preservados diversos aparelhos e instrumental médico, desde um lavatório destinado à higiene, anterior ao sistema de água encanada e esgotos, até um eletroímã de uso oftalmológico, além de instrumentos cirúrgicos, em estantes e prateleiras. Existem ainda livros descrevendo cirurgias em homens e mulheres, com pinturas ilustrativas detalhadas. E a grande doação do dr. Waldemar de Carvalho Pinto Filho, ortopedista da instituição por muitos anos, que deixou para preservação da memória científica da Santa Casa itens referentes à sua especialidade médica, a ortopedia.
Há também uma outra sala separada dedicada às ciências farmacêuticas, que permite reencontrar as antigas práticas de manipulação de medicamentos, que eram prescritos pelos médicos em receitas individualizadas e confeccionados por farmacêuticos especializados, antes do advento dos remédios industrializados, tal como os conhecemos em nossos dias. Data essa sala de 2005 e sua existência se deve ao dr. Paulo Queiroz Marques, que, preocupado com a preservação do passado histórico das atividades farmacêuticas, fez a grande doação inicial, preservando o mobiliário da primeira farmácia da Santa Casa de São Paulo e os equipamentos e utensílios utilizados pelos boticários de outrora.
Apesar de seus relevantes acervos, com mais de 7.500 itens, o museu necessita receber um tratamento museológico atual, para que possa atender aos critérios contemporâneos de exposição e tornar-se um centro de referência, de divulgação científica e cultural, atraindo o público em geral, visitantes escolares e da comunidade do entorno. Com essa finalidade a diretora do museu entrou em contato com a Expomus, que organizou o projeto de requalificação do museu.
Dirigida por Maria Ignez Mantovani Franco, a Expomus é uma firma que para os especialistas no campo da museologia não precisa de apresentação, por sua trajetória e pelas atividades desenvolvidas desde os anos 1980, com exposições, criação e revitalização de museus e espaços culturais, programas educativos, gestão de acervos, projetos socioculturais, programas de memória institucional, consultorias específicas e outras atividades pertinentes, em diversas cidades de vários Estados.
A Provedoria, na pessoa do dr. Kalil Rocha Abdalla, que tem revelado constante preocupação com a instituição em todos os seus múltiplos aspectos, assinou recentemente a autorização para que a Expomus coloque na Lei Rouanet a proposta de requalificação do museu da Santa Casa, para que possa ter seus acervos mais bem apresentados e tornar visível a inestimável contribuição da instituição, em termos sociais, culturais e científicos, para a cidade de São Paulo.
*June Locke Arruda é mordomo do museu e da capela da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (diretora).
Fonte: O Estadão
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