sexta-feira, 17 de maio de 2013

World Press Photo: o mito da verdade fotográfica

Pedro Xavier Mendonça
Um fotógrafo vencedor do prémio World Press Photo,  Paul Hansen, com a fotografia de um funeral de crianças palestinianas mortas num ataque israelita à Faixa de Gaza, é acusado de ter manipulado a imagem com que venceu. Sendo um prémio de fotojornalismo, valoriza-se o acontecimento espontâneo, num certo sentido mais "real", o que torna herética qualquer edição, por mais artística que possa ser. Portanto, o fotógrafo é apontado como um ser-de-pecado.
A transgressão sucede em relação à "verdade", com a qual a fotografia tem decerto uma interação ambígua. Por um lado, capta uma "realidade" mais do que qualquer outra técnica anterior ao seu aparecimento, como era o caso da pintura, por mais realista que fosse. Por outro, esta força de credibilidade, sendo apta à manipulação, tem um poder enorme de ludibriar, porque o recetor tende a acreditar mais facilmente numa fotografia do que numa pintura. Com a digitalização e os programas de edição, como o Photoshop, esta possibilidade aumentou muito.
Mas a "verdade" não é menos ambígua do que a fotografia. Eventualmente, há uma contaminação mútua, na medida em que a imagem fotográfica ocupa um espaço histórico em íntima relação com o verosímil. Isto é, as pessoas gostam da fotografia também porque ela é mais realista do que a pintura. Contudo, na História da Filosofia a "verdade" não é um conceito unívoco. Aliás, mesmo no "real", a "verdade" não se exerce sempre da mesma maneira. Basta voltar a pensar a fotografia de Paul Hansen.
Imaginemos que, de facto, a fotografia não foi manipulada, como reforçou a organização. Como seria? Seria mesmo não manipulada? Haveria um ponto neutro a partir do qual pudéssemos aceder àquilo, ao "real" fotografado? Há jornalismo sem edição? Há "real" sem edição? Na hipótese da sua não manipulação, reparemos nestes aspetos: Paul Hansen teve eventualmente que correr um pouco para se colocar de frente para os participantes no funeral, o que poderá ter obrigado os mesmos a moverem-se mais devagar, logo a não irem à sua velocidade "real"; o enquadramento da câmara fotográfica focou um aspeto do fenómeno, mas deixou as suas margens por revelar, o que não permitiu mostrar a totalidade do "real"; a cor que a fotografia emite também não é a mesma que a da perceção direta do "real"; as pessoas fotografadas não são seres imóveis, o seu movimento é bem mais "real"; o facto de se sentirem observadas pela câmara afasta-as da sua postura "real"; e, por fim, o modo como a fotografia foi exibida nos media não é certamente o "real", pois este tende a desaparecer no tempo, fixando-se apenas na memória, e de forma precária.
Por isso, o "real" fotográfico é sempre uma construção. Se houve manipulação, o pobre do Paul Hansen só quis construir um pouco mais, o que não quer dizer que a sua fotografia se torne menos verosímil por isso. Ninguém pode negar que aquela imagem representa uma realidade naquela parte do planeta. Possivelmente, é até mais "real" do que a espontaneidade.
Autor e blogue
Pedro Xavier Mendonça, investigador académico em estudos sociais de tecnologia e de comunicação, procura com este espaço trazer reflexões das pesquisas sobre tecnologia e sociedade. Porque a tecnologia é uma realidade social e tem implicações humanas, pretende-se pensá-la a partir destas duas vertentes. O objetivo é estimular o pensamento sobre este fenómeno evitando os quadros mentais que o fecham no mundo da técnica. pedroxaviermendonca@gmail.com

Fonte: Expresso XL

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