Dizem os jornais que a ministra da Cultura propôs, e a presidente da República já sancionou, o pagamento da televisão a cabo por Vale-Cultura. Houve protestos esparsos, principalmente por gente de teatro, sob a alegação de que as artes tradicionais, em nada eletrônicas, serão desfavorecidas.
De fato, há aqui um problema, um grande problema na verdade. É certo que a tevê a cabo exibe hoje uma grande parte da programação supostamente afeta às redes públicas de televisão com vezo culturalista. Mas o problema aparece quando nos perguntamos se a ideia de cultura ainda pode permanecer como slogan, sem truques de classe social, no andar que hoje tem a máquina televisiva como um todo.
É precisamente o que discutíamos, uma semana atrás, num seminário realizado pela TV Cultura de São Paulo. Ocorreu-me dizer que a poltrona “lie-flat” na primeira classe ou na executiva de algumas companhias aéreas vêm oferecendo o que chamam de “ice”, isto é, informação, comunicação e entretenimento. Oferecem, portanto, aquilo que, no âmbito geral da televisão, se chama de “cultura”: informação, entretenimento e variedades. Em última análise, sempre um conteúdo vendável – um negócio, portanto.
Redes sociais
Essa ideia de cultura ajusta-se perfeitamente a um novo tipo de gestão social, em que o controle público do sentido, a administração total, toma o lugar da velha política.Trata-se de cultura como uma instância de conformação do consenso e da hegemonia. Cultura é aqui a cena em que ganha sentido o exercício do poder de natureza gerencial.
A televisão ou qualquer outra modalidade de expressão audiovisual para grandes públicos vinha liderando, há mais de meio século, essa cultura autorreferente e gestionária do social por meio de imagens. Trata-se de uma combinação da linguagem do comércio (do dinheiro) com a atmosfera emocional (o ethos,os costumes) da vida em sociedade. O poder daí resultante é de natureza moral – uma moralidade comerciante, de modernização do consumo.
Federico Felllini disse, e me parecia certo, que a televisão é, no fundo, um eletrodoméstico financiado por vendedores de bens móveis desde as geladeiras até os atuais celulares. Mas é um eletrodoméstico que funciona por imagens, com um pedagogismo implícito: há sete décadas vem ensinando que cada um de nós deve administrar uma imagem própria, uma atualização da velha persona, a máscara com que se constrói a personalidade.
Antes, era a moral que nos mandava administrar psicologicamente a persona própria. Agora, a gestão dapersona é um imperativo das novas formas de relações sociais e das novas tecnologias da comunicação, como a internet com as suas redes sociais. Fora desse ensinamento, o que predomina na televisão é a reciclagem cultural.
Alta cultura
Quando a linguagem do dinheiro está ausente de um sistema televisivo, sobra a dimensão da cultura. Por isso, a expressão “TV Cultura” é forçosamente algo diferente da tevê comercial. “Cultura” guarda aí algo da antiga transcendência oitocentista, com um pano de fundo de certo ativismo social por meio da ideia de cultura.
O problema é que, apesar de sua real importância histórica como substituta do determinismo do instinto natural, a noção de cultura continua ambígua e abstrata. A ambiguidade da noção permanece não obstante as semelhanças, evidentes ao longo das diferentes etapas da sociedade ocidentalizada.
São semelhanças persistentes na modernidade, porque de fato a ideia de cultura como um campo autônomo é um fenômeno moderno, uma forma alinhada com outras (a democracia, a escola, a mercadoria etc.) constitutivas da sociedade burguesa. Mais precisamente, é a forma ideológica assumida pelo conhecimento que se assenta no comum burguês.
Cultura não é, portanto, o mesmo que conhecimento. Imagine-se o conhecimento como um mar em que se deve navegar: a cultura é um mapa, uma carta de navegação. Antes mesmo que se imponha o conhecimento, ela já se faz presente como uma matriz de orientação para fazer diferenças e estabelecer critérios, mas também como um mapa da memória do saber pertinente à reprodução da consciência burguesa.
Mas o conhecimento impulsiona a universalização da cultura. Essa matriz ou conjunto de formas simbólicas publicamente disponíveis sempre pressupôs uma elite moral ou ético-política, de filiação burguesa, que difundiu as ideias de progresso, de emancipação da humanidade etc. Essa idealização verdadeiramente teológica da cultura foi marcante no século 19. Quando ela é usada como patrimônio de uma classe social, universaliza-se e, idealizada, corre o risco de transformar-se numa segunda natureza.
A idealização da cultura europeia persistiu até a primeira metade do século passado, como comprova a leitura de um famoso texto polêmico de T.S. Eliot, em que ele tenta definir o conceito de cultura. Para o célebre poeta inglês, três instâncias – o indivíduo, a elite e a sociedade – estruturam a cultura, confrontando-se ou realizando trocas mútuas, mas sempre no interior de uma ordem responsável pela coesão e pelo avanço do todo social. Segundo este modelo, a cultura pode ser baixa ou alta e, neste último caso, é patrimônio de uma minoria (uma elite ou uma casta), pertencente a uma classe social que deve ser mantida tal e qual, pois lhe cabe recrutar e formar a elite responsável pela alta cultura. A ideia de educação como meio de democratização universal da cultura seria, assim, uma ingenuidade por conduzir necessariamente à redução da qualidade.
Monopólio da fala
Tudo isso tem ruído na pós-modernidade. Hoje, de um modo geral, não há modelos definitivos da ideia de cultura, mas descrições ou narrativas de como a cultura inscreve-se de modo autorreferente (sem transcendência) na vida social. O que aí se ratifica é a noção dos “processos sociais de significação”, ou seja, como essa entidade ambígua chamada “cultura” articula-se com a sociedade – portanto, com a economia, a produção, o poder.
Mas o que aí não está dito é que, na medida em que essa cultura autorreferente afirma-se como imprescindível à formação do capital humano no movimento da financeirização do mundo, verifica-se uma atração entre ela e o poder de natureza patrimonial, que se organiza em função da transmissão por grupos específicos. Há, assim, uma tendência à patrimonialização do campo da cultura (por uma “pequena-burguesia cultural” diversificada) caracterizada pela incorporação de um saber-fazer em grupos específicos (artistas, esportistas, produtores de eventos etc.), cujo capital é uma linguagem e uma competência técnica.
Não mais uma grande e única burguesia cultural, portanto, mas uma diversidade de grupos patrimoniais (a democracia culturalista da mídia) que demarcam seus territórios pela especificidade de suas competências técnico-simbólicas, principalmente na órbita do espetáculo. Embora se vejam aí diferenças para com as regras do capitalismo industrial puro e simples, não se registram contradições com o jogo das finanças e do mercado. A cultura perde a clássica potência de negatividade em benefício da integração pelo entretenimento ou pela informação banalizada.
O que pode significar “cultura” no título “vale-cultura”? Há nela algo de positivamente pedagógico (transformação no sentido do melhor, apostando na potência do sujeito)? Neste caso, seria um direito social, assim como a educação e a saúde? Ela ainda existe além do entretenimento ou apenas repete as fórmulas gestionárias da televisão comercial? Seria possível trabalhar a noção de “mapa” em vez da distribuição de pílulas de conhecimento?
Se publicamente discutidas por um ministério da “Cultura”, questões dessa ordem teriam mais cara de “política cultural” do que o pagamento da conta de televisão no fim do mês. Talvez esteja na hora de o Estado parar de contribuir para o monopólio da fala e voltar os olhos para aquilo que até agora não conseguiu entender direito: a cultura como matriz da educação.
***
[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]
Fonte: OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
Nenhum comentário:
Postar um comentário