segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O enigma fotográfico de Bento Gonçalves, o principal líder farroupilha


Reportagem revela a controvérsia a respeito do que seria a única imagem do general

O enigma fotográfico de Bento Gonçalves, o principal líder farroupilha  Félix Zucco/Agencia RBS
Fotografia inédita foi encontrada em museu de Júlio de CastilhosFoto: Félix Zucco / Agencia RBS
Guardadas como tesouros por descendentes ou exibidas como preciosidades em museus, relíquias de todos os tipos ajudam a reforçar o culto à Revolução Farroupilha. Deste domingo até o dia 17, por meio de 10 objetos selecionados por ZH, capítulos desta história serão resgatados. Nesta primeira reportagem, a controvérsia a respeito da foto que seria do general Bento Gonçalves.  
Quando tudo sobre a Guerra dos Farrapos parecia já ter sido escrito, eis que surge uma nova imagem da revolução que forjou a identidade do Rio Grande do Sul – e um novo enigma. Uma fotografia inédita encontrada no Museu Julio de Castilhos, que retrataria o general Bento Gonçalves, voltou ao centro de debates, dividindo opiniões e multiplicando teses sobre a representação do principal líder farroupilha.


Três pares de olhos examinam durante quase duas horas aquele retrato em tom sépia de personagem com olhar firme e lábios finos pronunciados em um biquinho, no Museu Julio de Castilhos, em Porto Alegre, tentando decifrar seu mistério.

Esquecida em uma pasta etiquetada anos atrás por uma estagiária, com o adesivo “Personalidades Históricas Públicas”, a fotografia desbotada causa furor desde que foi redescoberta no acervo mais antigo do Rio Grande do Sul, identificada como uma imagem de general Bento Gonçalves – supostamente a primeira e única da história a retratar o principal líder da Revolução Farroupilha, iniciada há 178 anos.

— E aí, se emocionou ou não? — pergunta ao final o diretor do museu, Roberto Schmitt-Prym, ao publicitário Raul Justino Ribeiro Moreira, tataraneto de Bento Gonçalves e presidente da associação da família, que fez questão de ir ao Julio de Castilhos na tarde de terça-feira para analisar a imagem, ao lado da historiadora Elma Sant’Ana — com quem está escrevendo em parceria uma biografia sobre Bento.

Moreira, que chegara desconfiado da possibilidade de existir um retrato original de seu tataravô, responde balançando a cabeça de cima para baixo, em gesto afirmativo. Depois de comparar minuciosamente a fotografia com a pintura do general em exposição no museu, saiu mais otimista.

— Alguns traços são realmente muito parecidos. É difícil assinar embaixo, mas é bem interessante — avaliou.

A ausência de registro da data em que foi feita aumenta a polêmica. O cartão que acompanha a fotografia traz o nome do fotógrafo H. Fritot, com a inscrição “Photografia Parisiense” e a cidade de Bagé. Como Bento morreu em 1847, antes da difusão de estúdios fotográficos no país, a direção do museu acredita que se trate de uma reprodução feita a partir de um daguerreótipo, imagem em placa de prata produzida pelo primeiro equipamento fotográfico fabricado em escala comercial.

Ainda assim, como a técnica surgiu 10 anos antes da morte de Bento, o líder farrapo precisaria estar entre os primeiros brasileiros a acompanhar a vanguarda internacional para a tese ser factível.  

Foto foi achada no ano passado, mas  só foi divulgada agora, após pesquisas
Foto: Félix Zucco


A foto foi localizada às vésperas da Semana Farroupilha do ano passado, quando funcionários procuravam materiais relativos ao período em suas pastas guardadas na reserva técnica, mas só foi divulgada agora, após a realização de pesquisas que, se não conseguiram comprovar a hipótese, pelo menos não a descartaram. Até então, a imagem considerada mais fiel de Bento era uma pintura anônima, em exposição no Julio de Castilhos.

— Foi uma surpresa enorme. Acho que agora chegou o momento de apresentar ao público e aos historiadores — afirma Prym, explicando que não é estranha a redescoberta tardia de relíquias como esta: a maioria das 11 mil peças do acervo nunca foi estudada — e só metade está digitalizada.

Apesar de destacarem que seria necessário um estudo mais aprofundado para garantir a autenticidade, historiadores como Gunter Axt, professor do mestrado em memória social e bens culturais do Unilassale e pesquisador associado da USP, e Spencer Leitman, historiador norte-americano brasilianista, autor de Raízes Sócio-econômicas da Guerra dos Farrapos, consideram a versão plausível. 

— Se comprovado cientificamente ser uma fotografia autêntica de Bento, será uma descoberta verdadeiramente importante. A fotografia era um campo experimental na época, que atraiu as mais brilhantes mentes. Talvez entusiasmado com essa descoberta, acho que consigo ver como a guerra devastou o rosto de Bento: ele envelheceu, a guerra drenou a vida extraordinária que tinha levado  empolgou-se Spencer, depois de analisar uma cópia escaneada da imagem, nos Estados Unidos.

Já o historiador Moacyr Flores, estudioso da temática farroupilha e autor de mais de 20 livros, rechaça a hipótese. Além de cogitar que seja a foto de um desenho, garante que não é Bento o retratado. Pelos traços, sustenta que seja outro farrapo, bem menos ilustre: Manuel Carvalho de Aragão e Silva, que chegou a tenente-coronel na guerra. 
A descrença é compartilhada pelo pesquisador das origens da fotografia no Brasil e no Rio Grande do Sul Ronaldo Marcos Bastos — que acredita se tratar de um retrato original, mas de alguém parecido com o líder farrapo. 

— Teriam de ser muitas coincidências para que fosse Bento — diz.

Apesar das divergências, o museu pretende ampliar a imagem e exibi-la como um retrato presumido de Bento, ainda este mês. Mesmo sem certeza?

— Claro. O Masp tem um quadro lá, que Pietro Maria Barbi, o diretor na época, colocou lá: “Pintura de Rembrandt”. E aí botou entre parênteses, pequenininho, embaixo: “Uma comissão do museu da Holanda acha que não é” —  responde o diretor, lembrando que a história é feita de versões.

“Notebook” a cavalo

Escrivaninha intinerante pertenceu a Bento Gonçalves e foi adquirida pelo tataraneto, Raul Moreira, há 10 anos
Foto: Félix Zucco


Dos fundos de sua casa na zona sul de Porto Alegre, à beira do Guaíba, o publicitário Raul Moreira, 50 anos, consegue avistar a outra margem do Rio, em Guaíba, onde seu tataravô tramou os primórdios da Revolução Farroupilha, com outros líderes farrapos, até a tomada da Capital pelos revolucionários, consolidada em 20 de setembro de 1835. As memórias impregnam desde a paisagem até o interior da propriedade, onde ele acumula relíquias do período.  

Uma das mais peculiares é uma escrivaninha itinerante que pertenceu a Bento, apelidada pelo descendente como  “o notebook da época”. Em madeira nobre, a peça restaurada se assemelha a uma maleta de madeira, carregada pelo general no lombo de seu cavalo, durante a vida nômade em acampamentos. Dobrável, a escrivaninha tinha divisórias para levar documentos, incluindo compartimentos especiais para a caneta bico de pena e o tinteiro. Assim, o general, que assumiu a presidência da República Rio-Grandense, em 1837, podia despachar comodamente no meio de suas andanças.

A relíquia, que antes pertencia a Breno Caldas, foi adquirida pelo tataraneto em um leilão, há cerca de 10 anos, por R$ 3 mil. O lance inicial era R$ 250 — e Moreira avalia ter feito um negócio vantajoso. 

— Sorte que não foi muito caro, porque eu ia até o final — diz o tataraneto, que assumiu para si a missão de conservar a memória familiar.

“Enquanto for vivo, vou ser o filtro”
Preocupado com a reputação dos antepassados e com a difusão de versões que considera inapropriadas, Moreira chegou a ameaçar a produção da minissérie A Casa das Sete Mulheres, da Rede Globo: caso a trama não fosse fiel à versão tradicional dos fatos, ele iria embargar a exibição. Tanto fez que conseguiu que o próprio diretor Jayme Monjardim fosse a sua casa consultá-lo, em 2003:

— Enquanto for vivo, vou ser o filtro. 

O culto à memória do tataravô é reforçado por relatos da época, como o deixado em anotações por Manuel Alves da Silva Caldeira, oficial que comandou os Lanceiros Negros:

“Era um cidadão muito atencioso e prudente e valente como o mais valente dos generais do nosso Exército. Era de boa estatura e bem feito de corpo, tinha a cabeça pequena e redonda, era a primeira espada da Província e tinha conhecimento da História Romana”, descreveu, em trecho destacado pelo historiador Leitman.

Na segunda reportagem da série, nesta segunda-feira, "O objeto de um duelo fatal". 

Leia todas as notícias sobre a Semana Farroupilha em site especial

BASTIDORES

Jéssica Rebeca Weber, 20 anos, aluna do 6º semestre da Feevale, venceu a 5ª edição do Primeira Pauta, e acompanhou a expedição em busca dos tesouros farrapos. Abaixo, ela conta como foi participar da reportagem. 
 
O concurso Primeira Pauta de Zero Hora 2013 me premiou com a caça ao tesouro que todo gaúcho deveria ter. Passando por casas, museus e arquivos históricos de cidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina com uma “mui leal e valorosa” equipe, vi a Revolução Farroupilha se reconstituir por meio de objetos.

Como estudante de Jornalismo e apaixonada por história — da que narra o dia a dia da dona Maria até a que muda o rumo de nações —, foi a melhor aula prática que eu teria em algumas vidas acadêmicas. Foi ainda mais válido por se tratar de uma cobertura multimídia. A convergência de tecnologia e meios de comunicação social é uma via de mão única, mas exige do jornalista um trabalho que não fica visível a quem acessa textos, imagens, vídeos e games em alguns cliques. 

Vi que, tanto quanto o bom texto, o faro e o comprometimento com a informação, existem três palavrinhas de sufixo “ência” que são requisitos obrigatórios no currículo de um bom jornalista. São elas: paciência, insistência, persistência. Isso no off e no online. A pauta nem sempre é o que tu pensas, e a história não tem apenas uma versão. É preciso estar atento a tudo, ouvir a todos, pesquisar e apurar. 

Já a Jéssica gaúcha e, como gaúcha, bairrista, viu que estava mesmo certo Joaquim Francisco de Assis Brasil em História da República Rio-Grandense: “Nada falta ao Rio Grande do Sul”. A começar pela história. E até nisso tem Gre-Nal.

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