CLEBER DIAS
No fim do ano passado, depois de transitar por Brasília
desde 2009, o governo federal anunciou a aprovação do Vale-Cultura para
trabalhadores com vencimentos até cinco salários mínimos. A iniciativa cria a
possibilidade de um adicional de R$ 50 para aquisição de bens culturais como
ingressos de cinema, teatros, livros, CDs, DVDs, entre outros. A maior parte
deste valor, R$ 45, será custeada pelo governo, em montante que pode chegar a
R$ 7 bilhões.
Desde o anúncio de seu projeto, a iniciativa esteve cercada
por certa polêmica. Críticos alegaram que o vale-cultura incentivaria o consumo
de produtos de pouco valor artístico, conformados a uma estética padronizada,
alimentando financeiramente um mercado que já não depende de incentivos
governamentais, dado que estaríamos tratando de um tipo de “cultura”, se é que
poderíamos tratá-la assim, suficientemente disseminada pelo próprio mercado. O
mais recomendável, ao invés disso, de acordo com este ponto de vista, seria a
limitação das possibilidades de gasto dos recursos apenas com bens culturais de
menor sustentação comercial. Teme-se que trabalhadores pobres e supostamente
despreparados culturalmente possam gastar esses recursos indevidamente,
adquirindo atrações já consagradas, como filmes hollywoodianos ou livros de
autoajuda.
Embora aparentemente dotados de boas intenções, na medida em
que dizem se preocupar com a “qualidade” dos bens culturais que serão
consumidos, há vários motivos para discordamos de tais argumentos. Em primeiro
lugar, convenhamos, haveria grande dificuldade de se estabelecer de forma
indiscutível o que distingue, afinal, a boa da má cultura. O que seria mesmo um
produto cultural de qualidade? E quem teria o poder de defini-lo?
Em segundo lugar, por mais comercialmente sustentáveis que
sejam, muitos produtos culturais não estão ainda disponíveis para todos.
Segundo dados do IBGE, 87% dos brasileiros não frequentam cinemas, 92% nunca
foram a um museu e 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança. Nesse
contexto, o vale-cultura não visa ajudar a vendar bens culturais; visa ajudar a
comprá-los.
Trata-se de uma mudança sutil, mas autêntica, nos paradigmas
da política cultural brasileira. Diferente de tudo o que sempre se fez, o
vale-cultura financiará não o produtor, mas o consumidor. É ele, o cidadão
comum, e não mais os artistas, mecenas, lobistas, produtores profissionais ou
publicitários de empresas petrolíferas, quem terá o poder de decidir de que
maneira o investimento público com cultura deve ser gasto. Ponto para a
democracia.
Em países como a França, cuja população tem renda per capita
e índices de escolarização maior que a brasileira, investimentos públicos
maciços e contínuos em bens culturais com pouca sustentabilidade econômica não
foram suficientes para popularizá-las. A Ópera de Paris, por exemplo, que já
chegou a consumir 75% do polpudo orçamento do Ministério de Cultura da França,
nunca chegou a ser frequentada por grupos mais populares. Na prática, portanto,
décadas de investimento público em óperas serviram apenas para subsidiar o
deleite dos ricos, que efetivamente constituem, até hoje, o principal público
para esse tipo de espetáculo.
Em linhas gerais, vinha sendo este também o rumo das
políticas culturais no Brasil. Grande parte das produções artísticas realizadas
aqui recebe alguma forma de financiamento público. Mas quem exatamente estaria
se beneficiando com isso? Com certeza não a massa de brasileiros pobres que
nunca pôde desfrutá-los. Segundo dados da Agência Nacional de Cinema, o governo
brasileiro chega a gastar mais de R$ 3 mil para cada ingresso vendido para
filmes subsidiados através de leis de incentivo!
Disparidades assim se justificam sob a nebulosa crença de
que é culturalmente importante se produzir filmes, exposições e espetáculos,
mesmo que eles venham a ser consumidos, se é que o serão de fato, por um
público de elite reduzidíssimo, muitas vezes restringindo-se aos amigos mais
fiéis do artista em cartaz. O Vale-Cultura, porém, aponta caminhos alternativos.
Ao finalmente tornar o cidadão um beneficiário direto dos
investimentos com cultura, cria-se potencial para romper um círculo vicioso.
Seguindo claramente a fórmula do bolsa-família, o vale-cultura pretende
desobstruir o acesso ao consumo cultural de um pequeno exército de trabalhadores,
mobilizando, dessa maneira, uma cadeia produtiva poderosa, mas ainda reprimida
e insuficientemente explorada, que é a da cultura. A um só tempo, pode-se gerar
empregos, renda, tributos, oportunidades de negócios, além da própria
democratização do acesso à cultura. Vários coelhos com uma cajadada só.
Por outro lado, artistas e produtores interessados em
recursos públicos terão agora que tentar convencer seus velhos financiadores,
os contribuintes, sobre a relevância de suas obras. Nada mais justo. Ao invés
de fechar-se sobre si mesma, como é praxe, muitas vezes, a arte terá de buscar
comunicação com um público historicamente excluído de seus recintos. Ponto para
a arte.
(Cleber Dias, professor – UFG;
e-mail: cag.dias@bol.com.br)
Fonte: DM.com.br/Opinião
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