quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Saber, tradição e memória



Júlia Caré

1. Serão milhões os pontos artisticamente dispostos pela mestria de mãos criadoras que conferem - hoje já não tanto - forma de arte à toalha bordada comemorativa de festividades familiares, à peça de vestuário ou decoração, às barras de lençol e almofadas do enxoval do destino feminino patriarcal de outrora, talvez para ser emalado no porão de navios rumo ao sonho de uma vida melhor… Representou um modo de vida e subsistência económica por toda a região, desde os tempos do povoamento e é uma forma de arte intimamente ligada à nossa identidade madeirense. Desde o estampar de arabescos, laços, flores e demais motivos decorativos destinados ao "rechilieu" aos "garanitos", ao "ponto de corda", às "cavacas", ao "caseado", ao "ponto de sombra", etc., até o toque final do recorte, em tecidos de linho, algodão, seda ou organdi… Chegou até a fazer-se produção industrial para exportação. A memória regista os relatos de histórias de sobrevivência e ganha-pão no ponto do bordado, de azáfama às vezes a quatro ou mais mãos de vizinhas reunidas na pressa da encomenda para a casa. Hoje já não se aprende a bordar com as mães e avós. A procura de uma profissão mais valorizada e melhor remunerada levou a que pouco a pouco se fosse abandonando este trabalho de rigor artístico e enorme beleza, tradicionalmente mal pago, sinónimo de ruralidade, pobreza e desvalorização social.
 Estratégias políticas e conceitos discutíveis de rentabilidade e sustentabilidade económica, aliados às periódicas crises da história estão a ditar a provável extinção do bordado Madeira e de outras formas de artesanato regional, tornando os seus profissionais indefesos, sem meios de vida, condenados à pobreza ou à dependência de subsídios sociais e a região mais pobre e amputada de uma fatia importante da sua identidade e tradição. Provavelmente a totalidade dos produtos artesanais "souvenirs of Madeira" acabará por ostentar a marca, "made in Taiwan"… Por negligência, indiferença ou incompetência. E o lado cultural, ecológico, educativo de uma secular aprendizagem intergeracional da tradição, a salvaguarda de um modo de vida, de uma cultura, de uma identidade feita de séculos de transmissão de saberes extinguem-se, porque é mais fácil, barato/lucrativo importar do que produzir na região. O que se fez com os programas comunitários para as ultraperiferias, destinados à protecção destas actividades?
2. Quando tanto se tem falado sobre hipotéticos currículos regionais, não sei se a escola ou outras instituições da sociedade poderiam ou deveriam ensinar as técnicas e as artes de trabalhar os diversos materiais que a natureza generosamente fornece e a tradição fez chegar à actualidade e nos conferiu marca identitária, recuperando as nossas raízes culturais. Afinal sempre constituíram saberes aprendidos informalmente, de geração em geração. Talvez pudessem constituir fonte de motivação a muitos jovens que ainda não têm uma ideia bem definida sobre isso da escolha profissional, ou cumprem o calvário das repetências, até ao abandono da escolaridade obrigatória, acumulando insucessos!... Ou ainda representar oportunidades de reformular percursos de vida para fugir ao estigma do desemprego, ou atalho para os que no imediato não podem cumprir os seus sonhos do Ensino Secundário de virem a ser cientistas, investigadores, engenheiros... e preveem abandonar a ilha em busca de trabalho. Como os que já o fazem levando na mala o "dote" bordado de diplomas, sonhos, esperança, memórias e saudades… 
Mas talvez estes não sejam saberes socialmente valorizados, dignos das escolares metas curriculares do Ministro Crato, ou que possam aspirar a equivalências à Ministro Relvas… E no entanto somos às vezes confrontados com interessantes iniciativas e experiências de jovens empreendedores, capazes de recuperar, recriar, inovar formas artesanais e tradicionais de trabalho e produção, numa saudável continuidade renovada de saberes culturais e identitários e que são simultaneamente formas de ganha-pão nestes tempos conturbados de incerteza económica… Quem disse que a inovação tecnológica não pode aliar-se ao artesanato tradicional? Ou que este não pode ensinar-se na escola? A propósito refere-se um episódio ocorrido há algum tempo, aquando da chegada da Internet. Uma mensagem enviada por uma escola de um país nórdico, Suécia ou Noruega, pretendia estabelecer um intercâmbio com uma escola nossa, que ensinasse artesanato. Ficou sem resposta, pois escolas de artesanato não temos. Deveríamos ter?
3. Partem cedo aqueles que os deuses amam. Parca consolação para a dor de pais, irmão, familiares e amigos que vêm um ente querido tão jovem partir. Implacável e fatal, a doença trocou as voltas à medicina, às orações, ao desejo de curar-se para poder voltar à escola. Cumpriu-se o lado negro da estatística. Ela partiu cedo demais. Mas deixou ficar em todos os que a conheceram, o seu sorriso, o seu exemplo de aluna aplicada, o seu sonho de ser médica pediatra…. Partiu, mas está presente nos afectos, na saudade, na memória. Até sempre Sofia!
Fonte: DNotícias Pt

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