quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Sobre o Nomadismo- Michel Maffesoli




A imagem de Hermes, o deus viajante, deus dos comerciantes e dos ladrões, paradigma da astúcia – hostil, imperceptível, e em perpétuo deslocamento, estes são fragmentos que figuram num pensamento arquetípico. Hermes e seu pé alado, para fugir quando não se satisfaz com a rotina. Atrativo e indício de uma fuga, Hermes leva a errância e toca de leve no chão, sem a ele se prender. Percebe-se, então, que o viajante testemunha um ‘mundo paralelo’, no qual o sentimento é vagabundo e a anomia tem força de lei. Trata-se do incômodo que afeta os sábios organizadores, cuja ambição é repelir o estranho e o imprevisível. Tal desconfiança é encontrada entre os romanos, pois seu medo do bárbaro vem do fato de que ele era nômade e apto ao movimento. O bárbaro perturba a quietude do sedentário e nada incomoda tanto um burocrata como a liberdade desses errantes – o que há é a fobia da mudança e daquilo que se move. Ressalta-se que a bacia do mediterrâneo foi um lugar excepcional de encontros de todos os gêneros e, no mesmo sentido, a Idade Média foi também um momento de circulação intensa. As Cruzadas tiveram motivações religiosas e sofreram grandes perdas militares, mas indicaram uma ânsia do ‘outro lugar’, percebe-se que o contato com outras civilizações fascinou parte da nobreza européia. De outro modo, na modernidade fez-se iluminar o espaço cercado do indivíduo, que se tornou inclusive a ‘territorialização’ moderna por excelência, sustentada pela ideologia individualista.

O indivíduo e sua família nuclear transformaram-se numa espécie de ‘prisão moral’, pelos quais a pessoa se fechava longamente, através da educação, da identidade, da profissão... A modernidade se caracteriza, portanto, por querer fazer tudo voltar a entrar na ordem, codificar e identificar, em suma, as massas deveriam ser domesticadas, assentadas no trabalho e na residência. Essa mesma domesticação marca a passagem do nomadismo para o sedentarismo – transição das comunidades para as comunas, destas para entidades administrativas maiores, até se chegar ao Estado nação. Acontece que o nomadismo é totalmente antitético em relação ao Estado moderno, mas o fechamento praticado durante a modernidade mostra sinais de fraqueza, dentre os seus vetores mais explícitos: hippies, vagabundos, poetas, jovens sem referências, turistas surpreendidos. Decerto, a ‘circulação’ recomeça, desordenada, e não deixa ninguém impune, nada parece poder represar seus fluxos, cujo movimento está em todas as cabeças e em todas as direções.

Nas cidades, os momentos e os lugares se oferecem totalmente vagos, em que o espírito e o corpo podem estar em vacância, onde a possibilidade de os seres que a habitam se traduz ao viverem a possibilidade de estar aqui e em outro lugar simultaneamente: o habitante da megalópole é, então, um nômade de gênero novo. Induz-se a uma ‘deriva psicogeográfica’, sob a qual as ruas lembram aberturas, que se desempenha a teatralidade social e predispõe a aventura, que nada parece poder frear. Os surrealistas e, mais tarde, os situacionistas da década de 1960 perceberam essa deriva urbana [psicogeografia]: a cidade como um terreno da aventura, um modo de experimentar todo tipo de vivência, suscitar encontros. A deriva urbana, em suma, explora um espaço determinado, confrontando com múltiplas estranhezas. Evidencia-se o nomadismo contemporâneo, portanto, quando a norma geral passou a dar lugar às especificidades ‘tribais’, cada um vivendo sua droga [alucinógeno, álcool], cultura, religião, música, esporte, etc. Torna-se necessário interrogar essas formas de trabalho ‘flexíveis’, o recrudescimento dos neo-artesanatos, o retorno à natureza, a multidão de práticas da dita New Age, assim por diante. O nomadismo contemporâneo é, enfim, um modo de relativizar o imperativo categórico da ‘disciplina’ e do ‘cercamento’ modernos.

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