sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE MEMÓRIA COLETIVA OU SOCIAL NA VISÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS.


A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE MEMÓRIA COLETIVA OU SOCIAL NA VISÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS.

por Maria José Souza Gerlack Vecchia*


Introdução
Na realidade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças, entendendo a percepção como o resultado de uma interação do ambiente com o sistema nervoso humano. Essa é a perspectiva do filósofo que aprofundou os estudos psicossociais,na década de 59, Henry Bergson, na tentativa de “desubjetivar” a noção de memória.
Para ele a memória podia ser entendida por dois movimentos distintos, o que ele denominava de “memória-hábito”: o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas. Ela é adquirida pelo esforço da atenção e pela repetição de gestos ou palavras, além de ser um processo que se dá pelas exigências da socialização, escrever, falar língua estrangeira, dirigir, costurar, digitar, etc. ações que fazem parte do nosso acervo cultural.
De outro lado ele inseria as lembranças independentes de quaisquer hábitos, lembranças singulares, isoladas, autênticas, que chamava de “ressurreições do passado”, de caráter não mecânico, mas evocativo, do seu aparecimento via memória.
Além de Bergson, outro estudioso da memória foi o sociólogo Maurice Halbwachs, (1877-1945) cujo trabalho se voltava para as relações entre memória e história pública, da qual foi o principal pesquisador. Ele entendia a memória como “quadros sociais da memória”, ou seja, a memória individual existe, mas situa-se na encruzilhada das malhas de relações múltiplas nas quais o homem está engajado, não escapando da trama da existência social atual.
Assim a consciência não está jamais fechada sobre si mesma, somos arrastados em múltiplas direções como se a lembrança fosse um ponto de referência diante da variação dos quadros sociais e da experiência coletiva. Nessa linha de pesquisa as relações sociais não ficavam limitadas ao mundo da pessoa, mas perseguiam a realidade interpessoal das instituições sociais, nas quais à memória do indivíduo dependia de suas relações com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão, enfim com grupos de convívio e grupos de referência peculiares a esse indivíduo.
Concepções teórico-metodológicas
Tal como Èmile Durkheim, considerado um dos principais teóricos da Sociologia, Halbwachs acreditava na anterioridade e na determinação de idéias sustentadas coletivamente sobre pensamentos e atitudes individuais.
Para ele, se lembramos é porque os outros, a situação presente nos provoca e traz as lembranças. Na maior parte do tempo lembrar não é rever, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens e idéias de hoje a experiência do passado, porque nossa percepção se altera conforme o passar do tempo e com ela nossas idéias, juízos de realidade e de valor.
Halbwachs ainda amarra a memória da pessoa à memória do grupo e a do grupo a esfera maior da tradição, que é a memória coletiva de cada sociedade e ressalta que o instrumento socializador da memória é a linguagem.
Não podendo esquecer que para o autor em questão a pressão dos preconceitos e as preferências da sociedade poderiam modelar o passado, recompondo a biografia individual e/ou grupal, segundo padrões e valores ideológicos.
Na sociologia discutem-se questões relacionadas ao pertencimento a grupos e ao modo como eles se relacionam com nossa autoconcepção e em nossas interações com os outros, a alteridade. Os grupos aos quais os homens pertencem e aqueles que ele exclui do seu viver como resultados de vínculos são todos temas importantes da vida cotidiana e contribuem para a forma e conteúdo das relações sociais que caracterizam nossas sociedades.
De acordo com o sociólogo polonês Bauman (2010), “Além dos nossos contemporâneos, há aqueles que habitam nossos mapas mentais”, isto é, nossa memória está povoada por outros indivíduos, próximos ou distantes, presentes ou ausentes.
Evidenciado pelos sociólogos Berger e Luckmann,(1985),se encontra a observação de que a realidade da vida cotidiana não é plena unicamente de objetivações, tais como nas situações em que se entra em relações com indivíduos que não estão presentes na realidade cotidiana,face a face, mas em formas menos próximas de relações sociais como nas subjetividades da nossa memória, ou por meio da linguagem.
Entendendo como memória biológica a capacidade de adquirir e recuperar informações preservadas no cérebro e como memória social a evocação ou presença de outros no pensamento do homem, o ensaio se volta para a compreensão de como a concepção de memória social pode apontar como funcionam nossas interações subjetivas em termos de relações sociais.
O conceito de memória social ou coletiva não se confunde com a memória histórica, pois a história resulta de uma construção cristalizada por um grupo estabelecido para defender-se contra a permanente erosão da mudança.
Se em princípio a memória parece ser um fenômeno individual, algo íntimo, próprio de uma pessoa, convém ressaltar mais uma vez que nossas lembranças são coletivas. As pessoas não precisam estar presentes, mesmo o indivíduo sozinho, em pensamento, se desloca de um grupo para outro.
Quando, por exemplo, há referências ao “período da ditadura militar no Brasil”, há designações atribuídas que aludem a fatos da memória social muito mais do que a fatos históricos. Essas expressões (linguísticas) remetem mais a noção de memória, ou seja, a percepção da realidade do que a factualidade positivista subjacente a tais percepções, conforme afirmação do sociólogo austríaco M. Pollack (1992).
Os acontecimentos podem ainda ser vividos indiretamente, “por tabela”, segundo Pollack, podendo não contar com a participação da pessoa em análise, mas que no imaginário tomam tamanha proporção que no final é quase impossível saber se a pessoa participou ou não.
É possível que, por meio da socialização política ou da socialização histórica ocorra um fenômeno de projeção ou identificação com determinados fatos passados que se pode falar em uma “memória quase que herdada”.
Um exemplo pode estar nas manifestações políticas no Brasil pelas eleições diretas, após longo período de ditadura militar, que marcaram expressiva fatia da população na década de 80 e essa memória continuou sendo transmitida em sintonia por gerações.
A memória constituída pode também se reportar a pessoas e personagens que transcendem a relação face a face. Elas se transformaram quase que em conhecidas mesmo que não tenham pertencido necessariamente ao mesmo espaço-tempo. Como é o caso do político Tancredo Neves, ainda que não se tenha compartilhado o seu período de vida ele é tratado como contemporâneo de muitos.
Há também na memória os lugares em que foram vivenciados os acontecimentos ou lugares de apoio à memória, como locais de referência. Por exemplo, pode se tomar a Praça da Sé, no centro da cidade de São Paulo, como marco da luta política pelas eleições diretas no Brasil. O que ocorre nesses casos são transferências, projeções, “por herança” nas palavras do já citado Pollack.
Para a grande maioria dos estudiosos da memória social não se deve considerar esses aspectos como indicadores de falsificação ou dissimulação do relato, sendo que o mais importante é conhecer a relação entre a realidade e a construção do personagem.
Cabe recordar que a memória é seletiva, isto é nem tudo fica registrado. Ela pode ser herdada, ou seja, as preocupações do momento formam um elemento de estruturação da memória. Há uma forte ligação entre a memória e o sentimento de identidade (a imagem de si, para si e para a alteridade).
A título de exemplo foi realizada uma pesquisa em Matão, SP.com indivíduos que trabalharam diretamente com um staff administrativo de ingleses, entre 1932 a 1954, que se identificaram como um grupo diferenciado dos demais trabalhadores, solidificando o social, criando uma identidade coletiva, com sentimento de unidade, continuidade e coerência.[2]
Esses são alguns dos aspectos da memória analisados onde cabem diferentes interpretações, conforme a escola teórica a que está vinculado o pesquisador, evidenciando a capilaridade da disciplina Sociologia.
Diante desses entendimentos sociais básicos sobre a memória humana passamos a observar concepções das neurociências sobre a memória e a perda dela, pois como anunciava Hanna Harendt em seus estudos sociais o pesadelo da amnésia coletiva rondando o homem significa a perda dos elos comunitários e aprendizado contínuo, condição de inserção dos indivíduos no tempo e no espaço.
A neurociência, grosso modo, vem a ser o estudo da realização física do processo de informação no sistema nervoso animal e humano. O seu estudo engloba a neurofisiologia, a neuroanatomia e a neuropsicologia.
Os fundamentos da neurociência tem se disseminado pelo mundo cientifico e acadêmico de forma bastante rápida, abrindo perspectivas de pesquisas em vários domínios do conhecimento humano, desenvolvendo pesquisas no campo da biologia molecular, trazendo consigo disciplinas como a biologia celular, a bioquímica, dentre outras que ampliam as possibilidades de compreensão dos mecanismos que compõem a memória.
Também realiza estudos sobre as manifestações de interrupção da aprendizagem, a perda da memória, visando aumentar e aprimorar a memória humana.
Segundo estudos de Kandel e Pittenger (1999), tem ocorrido uma unificação entre a neurobiologia, a psicologia cognitiva e a ciência do cérebro e da mente para a análise das mais variadas funções mentais tais como a percepção, a ação, a linguagem, a aprendizagem e a memória.
Para o neurocientista argentino naturalizado brasileiro Iván Izquierdo (2002.p.9) “Somos aquilo que recordamos… e também somos o que resolvemos esquecer. O passado, nossas memórias, nossos esquecimentos voluntários nos dizem quem nós somos, mas também nos permitem projetar rumo ao futuro, isto é, nos dizem quem poderemos ser.”
Assim um dos aspectos levados em consideração no estudo da memória é o esquecimento, pois de acordo com Izquierdo (2006), o ser humano esque ce a maioria das informações que adquire. Para a neurociência procurar entender as diferentes formas de esquecimento auxilia no entendimento da memória em si.

Conclusões
Em contraposição ao pesadelo da amnésia coletiva surgia nas ciências sociais uma das versões mais positivas sobre a queda de vínculo com as tradições passadas. O sociólogo Maurice Halbwachs considerou a memória como resultado de representações coletivas construídas no presente, que tinham por função manter a sociedade coerente e unida.
Assim a memória coletiva ou social passou a ser compreendida como parte constituinte ou das práticas reflexivas ou das construções sociais analisadas. Tanto através de testemunhos quanto de textos constituídos a memória foi resgatada como sendo o caminho mais eficaz de acesso aos impasses travados no passado.
Ainda assim o conceito de memória coletiva ou social tem sido tratado pelas diversas abordagens teóricas no campo das ciências sociais de forma contraditória, segundo Santos (2003).
Talvez um dos fatores para a falta de precisão teórica se deva ao fato de a memória estar em cada passo que damos, nas idéias pensadas, nas ações realizadas, ela está presente em tudo e em todos.
Na condição de seres humanos todos tem cota de interesse na troca de conhecimentos entre as ciências para dar conta de compreender a pós- modernidade e suas sociedades complexas nas quais estamos imersos, conforme Morin (2006).
Dessa forma é que o ensaio entende como importante expor a outros campos do conhecimento as idéias e estudos sobre a memória oriundas das ciências sociais.
De acordo com Pinker (2004) “Todo mundo precisa prever o comportamento dos outros e isso significa que todos nós necessitamos de teorias sobre o que motiva as pessoas e as suas memórias.” Sejam elas sociais, biológicas ou neurocientíficas.

Referências Bibliográficas
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 2005.
BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 2010.
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis, Vozes, 1985.
BERGSON, Henry. Matéria e memória. s.i.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo, Edusp, 1987.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.
IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre, Atmed, 2002.
IZQUIERDO, Iván; BEVILAQUA, Lia; CAMMAROTA, Martin. A arte de esquecer. Estudos Avançados 20 (58), 2006.p.289-296.
KANDEL, Eric.R.; PITTENGER, Christopher. The past, the future and biology of memory storage. Phil. Trans. Rev. Soc. Lond B. 1999, 354, p.2027-2052.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre, Sulina, 2006.
PINKER, Steven. Tábula rasa. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 5 (10), 1992. p. 200-212.
SANTOS. Miriam S. Memória coletiva e teoria social. São Paulo, Annablume, 2003.
* Doutorado em Sociologia, UNESP, Araraquara, 2003. Bolsista do Hemocentro de Ribeirão Preto, Casa da Ciência, 2011.
[2] VECCHIA, Maria José.S,G. CAmbuhy, uma árvore de muitos frutos na agroindústria de Matão SP.Araraquara, UNESP, 2003. Tese de doutorado.

fonte:http://nucleotavola.com.br/revista/a-importancia-do-conceito-de-memoria-coletiva-ou-social-na-visao-das-ciencias-sociais/



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