UMA IDÉIA FUNDAMENTAL
DA FENOMENOLOGIA
DE HUSSERL: A
INTENCIONALIDADE
“Ele a
comia com os olhos”. Esta frase e muitos outros signos marcam bastante a ilusão
comum ao realismo e ao idealismo (destaques nosso), segundo a qual conhecer, é
comer. A filosofia francesa após 100 anos de academicismo, ainda se prende a
essa ilusão.
Nós
todos lemos Brunschvicq, Lalande e Meyerson, nós todos acreditamos que o
Espírito-Aranha atirava as coisas em sua teia, as cobria de uma baba branca e
lentamente as deglutia, reduzindo-as à sua própria substância. O que é uma
mesa, um rochedo, uma casa? Um certo conjunto de “conteúdos da consciência”,
uma ordem desses conteúdos. O filósofo alimentador! Nada, portanto, parece mais
evidente: a mesa não é o conteúdo atual de minha percepção, minha percepção não
é o estado presente de minha consciência? Nutrição, assimilação.
Assimilação,
dizia Senhor Lalande, das coisas às ideias, das ideias entre elas e dos
espíritos entre eles. As poderosas arestas do mundo são roídas por essas
diligentes diástases: assimilação, unificação, identificação. Em vão, os mais
simples e os mais rudes entre nós procurariam neles alguma coisa sólida, alguma
coisa, enfim, que não fosse o espírito; eles não encontrariam em toda a parte
senão um mata-borrão mole e tão distinto: eles mesmos.
Contra
a filosofia digestiva do empiro-criticismo, do neo-kantismo, contra todo
“psicologismo”, Husserl não se cansa de afirmar que não se pode dissolver as
coisas na consciência. Vós vedes esta árvore aqui, pois sim. Mas vós a vedes no
lugar mesmo onde ela está: à borda do caminho, no meio da poeira, só e torcida
sob o calor, a vinte léguas do mediterrâneo.
Ela
não saberá entrar na nossa consciência, pois ela não e da mesma natureza que
esta. Você crê aqui reconhecer Bergson e o primeiro capítulo de Matéria e
Memória. Mas Husserl não é de modo algum realista: esta árvore sobre sua ponta
de terra fendida, ele não faz dela um absoluto que entraria, depois, em
comunicação conosco.
A
consciência e o mundo são dados ao mesmo tempo: exterior por essência à
consciência, o mundo é, por essência relativo à ela. É que Husserl vê na
consciência um fato irredutível que nenhuma imagem física pode exprimir. Salvo,
talvez, a imagem rápida e obscura do manifestar-se. Conhecer, é “se manifestar
rumo à”, arrancar-se da úmida intimidade gástrica para esgueirar-se, longe,
para além de si, rumo ao que não é si, longe, perto da árvore e entretanto fora
dela, pois ela me escapa e me repele e eu não posso mais me perder nela como
ela não pode diluir-se em mim: fora dela, fora de mim. Vós não reconheceis
nesta descrição vossas exigências e vossos pressentimentos? Vós bem sabeis que
a árvore não era vós, que vós não podeis fazê-la entrar nos vossos estômagos
sombrios e que a consciência não podia, sem desonestidade, se comparar à
possessão. Ao mesmo tempo, a consciência é pura, ela é clara como um grande
vento, não há nada nela, salvo um movimento para fugir de si, um deslizamento
para fora de si; se, pela impossibilidade, vós entrares “numa” consciência, vós
seríeis agarrado por um turbilhão e rejeitado para fora, perto da árvore, na
plena poeira, pois a consciência não tem ‘dentro’; ela não é nada senão o fora
dela mesma e é essa recusa absoluta, essa recusa de ser substância que a
constitui como uma consciência. Imagineis no presente uma série unida de
manifestações que nos arrancam de nós mesmos, que não deixam mesmo a um ‘nós
mesmos’ o ócio de se criar detrás deles, mas que nos lançam ao contrário para
além deles, na poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas; imagineis
que nós somos assim repelidos, abandonados pela nossa natureza mesma num mundo
indiferente, hostil e teimoso; vós teríeis compreendido o sentido profundo da
descoberta que Husserl exprime na sua famosa frase: “Toda consciência é consciência de alguma
coisa” Não é preciso mais nada por colocar um fim à filosofia delicada da imanência, onde tudo se faz por compromissos,
mudanças protoplásmicas, por uma morna química celular. A filosofia da
transcendência nos lança sobre a grande estrada, no meio de ameaças, sob uma
obcecante luz. Ser, diz Heidegger, é ser no mundo. Compreendeis este “ser-no”
no sentido de movimento. Ser, é manifestar-se no mundo, é partir de um nada de
mundo e da consciência para de repente se manifestar-consciência-no-mundo. Que
a consciência tente se recuperar, de coincidir enfim com ela mesma,
imediatamente, se fecham às janelas, ela se aniquila.
Essa necessidade para a consciência de existir
como consciência de outra coisa que ela, Husserl a nomeia de “intencionalidade”.
Eu
falei inicialmente da consciência para melhor me fazer entender: a filosofia
francesa, que nos formou, não conhece de modo algum senão a epistemologia, Mas,
para Husserl e os fenomenólogos, a consciência que nós agarramos das coisas não
se limita ao seu conhecimento. A consciência ou pura “representação” não é
senão uma das formas possíveis de minha consciência “desta” árvore; eu posso
também amá-la, temê-la, odiá-la, e esta ultrapassagem da consciência em relação
à ela mesma, que nomeamos de “intencionalidade”, se reencontra no receio, no
ódio e no amor. Odiar o outro, é uma maneira ainda de se manifestar rumo a ele,
é o encontrar de repente diante de um estranho do qual se vive, do qual se
sofre primeiro a qualidade objetiva de “odioso”. Eis que, duma só vez, as
famosas reações “subjetivas”, ódio, amor, temor, simpatia, que flutuam na
salmoura mal aromática do Espírito, delas se arrancam; elas não são senão
maneiras de descobrir o mundo. São as coisas que se revelam de repente para nós
como odiosas, simpáticas, horríveis, amáveis. É uma propriedade dessa máscara
japonesa de ser terrível, uma inesgotável, irredutível propriedade que
constitui a sua natureza mesma, – e não a soma de nossas reações subjetivas a
um pedaço de madeira esculpida. Husserl reinstalou o horror e o encanto nas
coisas. Ele nos restituiu o mundo dos artistas e dos profetas: assustador,
hostil, perigoso, como enseadas de graça e de amor.
Ele
tornou o lugar claro para um novo tratado das paixões que se inspiraria desta
verdade tão simples e tão profundamente irreconhecível para nós refinados: se
nós amamos uma mulher é porque ela é amável. Ei-los libertos de Proust.
Libertos ao mesmo tempo da ‘via interior’: em vão nós procuraremos, como Amiel,
como uma garota que se abraça aos ombros, as carícias, as animações de nossa
intimidade, porque finalmente tudo está fora, tudo, até nós mesmos: fora, no
mundo, entre os outros. Não é em não sei qual retiro que nós nos descobriremos:
é na estrada, nas cidades, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem
entre os homens.
Janeiro 1939.
Fonte: VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 2, n. 01, pp. 102–107, jan./jun. 2005.
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