quarta-feira, 19 de setembro de 2012

TRADUÇÃO DO TEXTO DE JEAN-PAUL SARTRE: UNE IDÉE FONDAMENTALE DE LA PHÉNOMÉNOLOGIE DE HUSSERL: L’INTENTIONNALITÉ


UMA IDÉIA FUNDAMENTAL DA FENOMENOLOGIA
DE HUSSERL: A INTENCIONALIDADE
“Ele a comia com os olhos”. Esta frase e muitos outros signos marcam bastante a ilusão comum ao realismo e ao idealismo (destaques nosso), segundo a qual conhecer, é comer. A filosofia francesa após 100 anos de academicismo, ainda se prende a essa ilusão.
Nós todos lemos Brunschvicq, Lalande e Meyerson, nós todos acreditamos que o Espírito-Aranha atirava as coisas em sua teia, as cobria de uma baba branca e lentamente as deglutia, reduzindo-as à sua própria substância. O que é uma mesa, um rochedo, uma casa? Um certo conjunto de “conteúdos da consciência”, uma ordem desses conteúdos. O filósofo alimentador! Nada, portanto, parece mais evidente: a mesa não é o conteúdo atual de minha percepção, minha percepção não é o estado presente de minha consciência? Nutrição, assimilação.
Assimilação, dizia Senhor Lalande, das coisas às ideias, das ideias entre elas e dos espíritos entre eles. As poderosas arestas do mundo são roídas por essas diligentes diástases: assimilação, unificação, identificação. Em vão, os mais simples e os mais rudes entre nós procurariam neles alguma coisa sólida, alguma coisa, enfim, que não fosse o espírito; eles não encontrariam em toda a parte senão um mata-borrão mole e tão distinto: eles mesmos.
Contra a filosofia digestiva do empiro-criticismo, do neo-kantismo, contra todo “psicologismo”, Husserl não se cansa de afirmar que não se pode dissolver as coisas na consciência. Vós vedes esta árvore aqui, pois sim. Mas vós a vedes no lugar mesmo onde ela está: à borda do caminho, no meio da poeira, só e torcida sob o calor, a vinte léguas do mediterrâneo.
Ela não saberá entrar na nossa consciência, pois ela não e da mesma natureza que esta. Você crê aqui reconhecer Bergson e o primeiro capítulo de Matéria e Memória. Mas Husserl não é de modo algum realista: esta árvore sobre sua ponta de terra fendida, ele não faz dela um absoluto que entraria, depois, em comunicação conosco.
A consciência e o mundo são dados ao mesmo tempo: exterior por essência à consciência, o mundo é, por essência relativo à ela. É que Husserl vê na consciência um fato irredutível que nenhuma imagem física pode exprimir. Salvo, talvez, a imagem rápida e obscura do manifestar-se. Conhecer, é “se manifestar rumo à”, arrancar-se da úmida intimidade gástrica para esgueirar-se, longe, para além de si, rumo ao que não é si, longe, perto da árvore e entretanto fora dela, pois ela me escapa e me repele e eu não posso mais me perder nela como ela não pode diluir-se em mim: fora dela, fora de mim. Vós não reconheceis nesta descrição vossas exigências e vossos pressentimentos? Vós bem sabeis que a árvore não era vós, que vós não podeis fazê-la entrar nos vossos estômagos sombrios e que a consciência não podia, sem desonestidade, se comparar à possessão. Ao mesmo tempo, a consciência é pura, ela é clara como um grande vento, não há nada nela, salvo um movimento para fugir de si, um deslizamento para fora de si; se, pela impossibilidade, vós entrares “numa” consciência, vós seríeis agarrado por um turbilhão e rejeitado para fora, perto da árvore, na plena poeira, pois a consciência não tem ‘dentro’; ela não é nada senão o fora dela mesma e é essa recusa absoluta, essa recusa de ser substância que a constitui como uma consciência. Imagineis no presente uma série unida de manifestações que nos arrancam de nós mesmos, que não deixam mesmo a um ‘nós mesmos’ o ócio de se criar detrás deles, mas que nos lançam ao contrário para além deles, na poeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre as coisas; imagineis que nós somos assim repelidos, abandonados pela nossa natureza mesma num mundo indiferente, hostil e teimoso; vós teríeis compreendido o sentido profundo da descoberta que Husserl exprime na sua famosa frase:  “Toda consciência é consciência de alguma coisa” Não é preciso mais nada por colocar um fim à filosofia delicada da  imanência, onde tudo se faz por compromissos, mudanças protoplásmicas, por uma morna química celular. A filosofia da transcendência nos lança sobre a grande estrada, no meio de ameaças, sob uma obcecante luz. Ser, diz Heidegger, é ser no mundo. Compreendeis este “ser-no” no sentido de movimento. Ser, é manifestar-se no mundo, é partir de um nada de mundo e da consciência para de repente se manifestar-consciência-no-mundo. Que a consciência tente se recuperar, de coincidir enfim com ela mesma, imediatamente, se fecham às janelas, ela se aniquila.
 Essa necessidade para a consciência de existir como consciência de outra coisa que ela, Husserl a nomeia de  “intencionalidade”.
Eu falei inicialmente da consciência para melhor me fazer entender: a filosofia francesa, que nos formou, não conhece de modo algum senão a epistemologia, Mas, para Husserl e os fenomenólogos, a consciência que nós agarramos das coisas não se limita ao seu conhecimento. A consciência ou pura “representação” não é senão uma das formas possíveis de minha consciência “desta” árvore; eu posso também amá-la, temê-la, odiá-la, e esta ultrapassagem da consciência em relação à ela mesma, que nomeamos de “intencionalidade”, se reencontra no receio, no ódio e no amor. Odiar o outro, é uma maneira ainda de se manifestar rumo a ele, é o encontrar de repente diante de um estranho do qual se vive, do qual se sofre primeiro a qualidade objetiva de “odioso”. Eis que, duma só vez, as famosas reações “subjetivas”, ódio, amor, temor, simpatia, que flutuam na salmoura mal aromática do Espírito, delas se arrancam; elas não são senão maneiras de descobrir o mundo. São as coisas que se revelam de repente para nós como odiosas, simpáticas, horríveis, amáveis. É uma propriedade dessa máscara japonesa de ser terrível, uma inesgotável, irredutível propriedade que constitui a sua natureza mesma, – e não a soma de nossas reações subjetivas a um pedaço de madeira esculpida. Husserl reinstalou o horror e o encanto nas coisas. Ele nos restituiu o mundo dos artistas e dos profetas: assustador, hostil, perigoso, como enseadas de graça e de amor.
Ele tornou o lugar claro para um novo tratado das paixões que se inspiraria desta verdade tão simples e tão profundamente irreconhecível para nós refinados: se nós amamos uma mulher é porque ela é amável. Ei-los libertos de Proust. Libertos ao mesmo tempo da ‘via interior’: em vão nós procuraremos, como Amiel, como uma garota que se abraça aos ombros, as carícias, as animações de nossa intimidade, porque finalmente tudo está fora, tudo, até nós mesmos: fora, no mundo, entre os outros. Não é em não sei qual retiro que nós nos descobriremos: é na estrada, nas cidades, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens.
Janeiro 1939.

Fonte: VEREDAS FAVIP, Caruaru, Vol. 2, n. 01, pp. 102–107, jan./jun. 2005.

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