A preparação começava no finzinho da manhã. Primeiro, uma das pistas era fechada, atravancando ainda mais o trânsito já complicado do sábado. Quando se aproximava de uma da tarde, a polícia interditava toda a Carvalho de Souza. Em poucos minutos, a rua estaria tomada de gente. Todo Carnaval era assim. Madureira, principal centro comercial do subúrbio do Rio de Janeiro, cerrava as portas de suas lojas e parava para assistir à passagem do Bloco das Piranhas. Na rua, milhares de homens barbados metidos em vestidos de chita dançavam e cantavam, oferecendo um colorido espetáculo para o garoto que, de um dos sobrados, a tudo via com olhos úmidos de inocência e fascínio. O garoto era eu.
O Carnaval da minha infância é a imagem difusa desse desfile. As "piranhas" agarrando os incautos que passavam pela rua em trajes "normais". As latas de cerveja erguidas sobre as cabeças. Os vômitos nos postes de uns poucos que resistiam até tarde da noite. E, sobretudo, a música que movia e dava sentido à multidão: o samba-enredo. Berço do Império Serrano e vizinha de Oswaldo Cruz - o bairro sede da Portela -, Madureira sempre teve esse estilo de samba como trilha-sonora. Na absoluta maioria das casas, o disco com os sambas-enredo era comprado assim que chegava às lojas e girava na vitrola até que cada verso estivesse devidamente decorado. Começando, é claro, pelos hinos de Império e Portela.
Lá em casa não era diferente. Aos 8 anos, ao lado de minha mãe, saudei o circo repetindo o refrão de David Corrêa, Jorge Macedo e Norival Reis para a Portela: "Ó raia o sol o dindin / Suspende a lua dindin / Salve o palhaço / Que está lá no meio da rua". Dois carnavais depois, foi por conta de um samba-enredo que desviei da linhagem portelense da absoluta maioria da família e abracei a agremiação de meu pai. O Império, então, denunciava o progressivo gigantismo das escolas ("Super Escolas de Samba S/A / Super-alegorias / Escondendo gente bamba / Que covardia!") e, com Bum Bum Paticumbum Prugurundum, ganhou o título. Autores do hino, Beto Sem Braço e Aluízio Machado cruzaram o bairro em carro aberto, sob aplausos de uma impressionante aglomeração. Com o Império campeão e a Portela em segundo, Madureira chorou - mas de alegria. Naquele 1982, eu completava a primeira década da existência, cursava a segunda série primária num colégio do bairro da Piedade, passava as férias na Barra da Tijuca e certamente me apaixonei por alguma menina da escola. A lembrança mais funda, contudo, é do samba que varreu a cidade e acabaria se tornando clássico.
Talvez como em nenhum canto do país, no Rio de Janeiro os sambas-enredo são, efetivamente, parte da alma da cidade: tocam nas rádios e nas ruas, tornam-se objeto de exaustiva discussão. Até a década de 1980, a seleta com os hinos das escolas vendia mais de um milhão de cópias por ano, entre LPs e fitas-cassete. Hoje, com a democratização da internet, essa demanda foi canalizada para os sites especializados e para o YouTube, que meses antes do Carnaval já disponibilizam as faixas dos sambas em MP3, além de vídeos com letra e melodia. Os aficionados, então, trocam arquivos e impressões.
A popularidade é tamanha que as torcidas dos clubes cariocas costumam levar trechos dos hinos para os estádios. Os versos "Explode coração / Na maior felicidade / É lindo o meu Salgueiro / Contagiando e sacudindo essa cidade", com o nome do clube da vez no lugar do termo "Salgueiro", são os campeões de audiência. Mas o Maracanã já ouviu muitos outros sambas, como É Hoje ("É hoje o dia da alegria / E a tristeza nem pode pensar em chegar"), da União da Ilha, e Chuê Chuá, as Águas Vão Rolar ("É no chuê, chuê, é no chuê, chuá / Não quero nem saber / As águas vão rolar"), da Mocidade Independente de Padre Miguel, este nos jogos sob chuva. Os alvinegros gostam especialmente de E Por Falar em Saudade ("Tem bumbum de fora pra chuchu / Qualquer dia é todo mundo nu"), da Caprichosos de Pilares, que faz uma menção direta ao clube ("Bota, bota, bota fogo nisso").
Os hinos são lembrados também nas rodas de samba que se espalham pelo Rio. Há, inclusive, o caso de um samba-enredo derrotado na disputa interna da escola e que acabou virando item recorrente no repertório dessas rodas. Estrela de Madureira ("E um trem de luxo parte / Para exaltar a sua arte / Que encantou Madureira"), de Acyr Pimentel e Cardoso, hoje é mais conhecido do que o hino que o Império levou à Av. Antônio Carlos em 1975. Muita gente ignora até mesmo tratar-se de um samba, originalmente, de enredo.
Estranho pensar que, quando as escolas começaram a surgir, suas exibições não se davam com uma composição alusiva à história contada na Avenida. No início dos anos 1930, época em que agremiações como a Estação Primeira de Mangueira e a Oswaldo Cruz (futura Portela) passaram a se apresentar na Praça Onze, o desfile se desenrolava ao som dos chamados 'sambas de terreiro', cujas letras retratavam o cotidiano da comunidade. Não havia conexão direta entre o que se cantava e o que se exibia.
Desfazendo (ou aprofundando) a controvérsia sobre qual teria sido o primeiro samba exaltar especificamente o tema definido pela escola, no recém-lançado Samba de Enredo: História e Arte, o escritor Alberto Mussa e o historiador Luiz Antonio Simas apontam 61 anos de República, de 1951. Segundo eles, embora tributário de experiências anteriores levadas a cabo pela Unidos da Tijuca, pela Portela e pela Mangueira, foi o hino de Silas de Oliveira para o Império que finalmente sintetizou o formato. No livro, os autores investigam as origens do samba-enredo, sua evolução formal e temática. Desmontam a tese de que os enredos nacionalistas que predominavam até os anos 1970 se deviam somente à imposição do governo, mostrando que as agremiações tomavam esse caminho também para conquistar aceitação social, legitimando-se frente ao Estado. E lembram sambas que acabaram soterrados pelo tempo, de escolas como Em Cima da Hora e Tupi de Brás de Pina.
Mas o rigor da pesquisa não é capaz de solapar a memória afetiva. O salgueirense Mussa recorda-se, por exemplo, das manhãs em que ia à praia com a mãe ouvindo tocar, no rádio do carro, Onde o Brasil Aprendeu a Liberdade ("Cirandeiro, cirandeiro ó / A pedra do teu anel / Brilha mais do que o sol"), da Vila Isabel. O imperiano Simas conta que descobriu o duplo significado da palavra "veado" com o samba Sonhar com Rei dá Leão ("Sonhar com filharada é o coelhinho / Com gente teimosa, na cabeça dá burrinho / E com rapaz todo enfeitado / O resultado pessoal é pavão ou é veado), da Beija-Flor. E ainda hoje sofre quando escuta Invenção de Orfeu, da Vila, que remonta ao ano da separação de seus pais.
Apaixonado pelo assunto como os dois, curiosamente só fui sair na minha escola de coração em 1996 - e exatamente em razão de um samba-enredo. A Serrinha prestaria tributo ao sociólogo Herbert de Souza, já bastante debilitado, e o samba de Aluízio Machado, Lula, Beto Pernada, Arlindo Cruz, e Índio do Império era capaz de emocionar o mais frio dos homens. "Quero ter a minha terra, ô ô ô / Meu pedacinho de chão, meu quinhão / Isso nunca foi segredo / Quem é pobre tá com fome / Quem é rico tá com medo", dizia o refrão, e a cada audição me dominava o pavor de não participar de uma vitória imperiana - e com um grande samba. Faltando três dias para o desfile, telefonei para a quadra e comprei uma fantasia. Sozinho, sem conhecer ninguém da ala ou da escola, cheguei à Avenida. Procurei fantasias iguais à minha e, ao encontrar, fiquei por perto, esperando o momento de entrar. Ao pisar na Sapucaí, desabei no choro.
Ali, na presença de componentes com quem nunca sequer conversara, na cadência singular daquela bateria, naquele belo samba, não havia apenas uma lírica e contudente crítica social. Ali, estava a casa da minha bisavó, estava o primeiro amor num parquinho de Madureira, estava o meu pai. Até hoje, a cada vez que entro na quadra ou desfilo no Império, sinto como se estivesse com ele, a barriga inflada de chope, o Hollywood no bolso da camisa. Escutar os sambas do Império é meu modo de vencer tardiamente o câncer que o derrotou, de tê-lo novamente comigo. E restaurar uma nesga de ilusão que, como um dia cantou a Vila Isabel, ajuda a dar "razões pra vida tão real da quarta-feira".
AUTOR: MARCELO MOUTINHO
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