"São estes os objetos que Violette Morin chama de objetos biográficos, pois envelhecem com o possuidor e se incorporam à sua vida: o relógio da família, o álbum de fotografias, a medalha do esportista, a máscara do etnólogo, o mapa-múndi do viajante... Cada um desses objetos representa uma experiência vivida, uma aventura afetiva do morador. Diferentes são os ambientes arrumados para patentear status, como um décor de teatro: há objetos que a moda valoriza, mas não se enraízam nos interiores ou têm garantia por um ano, não envelhecem com o dono, apenas se deterioram. Só o objeto biográfico é insubstituível: as coisas que envelhecem conosco nos dão a pacífica sensação de continuidade. Reconhece Machado de Assis: “Não, não, a minha memória não é boa. É comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras, nem nomes, e somente raras circunstâncias. A quem passe a vida na mesma casa de família, com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição” Não só em nossa sociedade dividimos as coisas em objetos de consumo e relíquias de família. Mauss encontra essa distinção em muitos povos: tanto entre os romanos como entre os povos de Samoa, Trobriand e os indígenas norte-americanos. Há talismãs, cobertas de pele e cobres blasonados, tecidos armoriais que se transmitem solenemente como as mulheres no casamento, os privilégios, os nomes às crianças. Essas propriedades são sagradas, não se vendem nem são cedidas, e a família jamais se desfaria delas a não ser com grande desgosto. O conjunto dessas coisas em todas as tribos é sempre de natureza espiritual. Cada uma dessas coisas tem nome: os tecidos bordados com faces, olhos, figuras animais e humanas, as casas, as paredes decoradas.Tudo fala, o teto, o fogo, as esculturas, as pinturas".
FONTE: BOSI, Eclea, excerto do capítulo 1 – “A substância social da memória” – “Sob o signo de Benjamin” [Walter Benjamin], do livro O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social (São Paulo: Ateliê Editorial, 2003).
Vídeo: mtomasini.
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