domingo, 16 de setembro de 2012

O embate da arte fotográfica contra o esquecimento

A constante mudança de mídias tem um papel dúbio: contribui e dribla a manutenção de obras fotográficas
Com relação à documentação e à memória, a fotografia supera qualquer outro meio de representação, já que não apenas descreve ou sugere a realidade, mas também a torna presente - anota a pesquisadora mexicana, Laura González Flores, no livro "Fotografia e Pintura - Dois meios diferentes?". Quem comunga com essa ideia é o fotógrafo e editor cearense Tiago Santana, para quem "a fotografia está intimamente ligada à memória", embora lembre de um peso que a técnica/arte carrega sobre os ombros: sua ligação com a realidade. Sendo assim, ela é, também, "um registro, uma interpretação do mundo em que se vive, marcado pela profusão de imagens".

Trabalho de Tiago Santana: fotógrafo preocupa-se com preservação de sua obra FOTO: DIVULGAÇÃO
Quando o assunto é preservação da memória, Tiago Santana, que transita com desenvoltura entre os meios analógicos e digitais, não esconde o desejo de ver sua obra conservada. Por isso, tem cuidado em salvar seus trabalhos em diversas mídias, sem esquecer de copiar também em papel alguns. "Ainda trabalho muito com máquina analógica, com filmes e não consigo comprar mais em Fortaleza", confessa, numa demonstração de que a arte não tem limites, muito menos, o artista deve ter preconceito com materiais ou tecnologias.

Muitas vezes, a preservação da memória pode custar caro ao fotógrafo e aos artistas. Para salvar seus trabalhos, recorre a várias mídias, tendo o cuidado de mudar sempre. "Migro para outras mídias", confessa, mas diz não ser algo simples, apostando que novas ferramentas estão sendo aperfeiçoadas. Diz que usa HDs espelhados também.

O receio quanto à fragilidade universo virtual é uma realidade. Enquanto existem facilidades para fotografar, todo aparelho celular dispõe de câmara, o maior problema é com a preservação dessa memória. Com os meios analógicos não era diferente, era complicado porque também a fotografia podia se deteriorar. Na era digital, a saída é fazer back-up, mudar de mídia, salvar em locais diferentes. A tecnologia muda rápido. Hoje, é difícil achar um disquete, ressalta, considerando ser difícil para um profissional driblar essa fragilidade, imagine para um amador.

Tiago Santana destaca a importância dos álbuns de família, fundamentais para o estudo do comportamento de uma sociedade. Hoje, esses álbuns estão desaparecendo e migrando para o espaço digital, sendo difícil manter. Não arrisca dizer o que vai acontecer, explicando que no caso da arte, o efêmero faz parte da obra, da proposta do artista. Teme que parte da memória da sociedade atual esteja se perdendo, uma vez que o sistema de armazenamento é delicado. No caso do Ceará e de Fortaleza o cuidado é em preservar os arquivos que já existem. "Os acervos não têm uma guarda adequada", diz, acrescentando que tem muito material jogado. Ao mesmo tempo não esconde a preocupação com o momento atual, ou seja, com o que está sendo produzido.

Retratos
Muitas fotos nem sequer são impressas e, às vezes, o material não é de boa qualidade, diferente, por exemplo, dos retratos pintados, que duravam muito. Hoje, disse ter notícia de que pessoas estão adquirindo fotos impressas em material de péssima qualidade. No caso da arte, muitas vezes, o artista não usa pigmento, justificando ser esta a proposta da obra. Defende o registro impresso, seja em forma de catálogo ou de livro. "É o que fica", argumenta, afirmando não querer que sua obra tenha o caráter efêmero.

A professora Silvana Boone pondera que, desde a sua invenção, a fotografia teve um papel determinante na existência e registro das demais formas de arte. "Aos poucos, a memória do homem foi sendo resguardada com a ampliação das técnicas da imagem, como o cinema, o vídeo e mais recentemente, com as tecnologias computacionais". Na sua opinião, o armazenamento de dados no ciberespaço é uma forma de perpetuar obras no espaço imaterial, porém, a partir da constante evolução das mídias, tudo torna-se obsoleto rapidamente e nem sempre o recurso para tornar a obra física novamente se mantém atualizado. Admite que o registro ou documentação da arte produzida a partir de tecnologias computacionais vem sendo objeto de discussão em muitos seminários de arte.

No mês de julho, conta que o assunto foi discutido durante o Festival Internacional de Linguagens Eletrônicas (File), em São Paulo. Trata-se da complexidade e os desafios da preservação da arte tecnológica, já que um dos problemas que se apresenta nas relações entre arte e tecnologia é justamente a questão do armazenamento das obras. "Como solução para a manutenção da história da arte criada a partir das tecnologias, deve-se iniciar um processo de registro das obras, fotográfico e videográfico", diz, admitindo que muitas obras já se perderam nas últimas décadas. Um dos problemas é que os equipamentos eletrônicos se tornam logo obsoletos, sendo considerado um entrave para que se mantenham algumas obras nos acervos de arte contemporânea.

"O museu virtual, hoje, é uma realidade que, mais do que armazenar produções de maneira imaterial, tem o caráter de aproximação do público em qualquer parte do mundo, pelo acesso através da rede internet". Mas, de qualquer forma, é mais um refém da tecnologia que torna todas as coisas impalpáveis". Para Silvana Boone, não existe uma segurança para a memória; da mesma forma que as tecnologias podem ser responsáveis pela não-existência física, uma obra em papel, uma tela pintada, uma fita de vídeo ou uma escultura em mármore também está sujeita a ser inutilizada ou perdida.

"Salvem os arquivos"
"Queimem o Louvre", mas "salvem os arquivos". As provocações, uma feita nos anos 1960, a outra, em 2008, que aparecem em artigo da artista e professora, Diana Domingues, no livro "Arte, ciência e tecnologia - passado, presente e desafios" mostra a dicotomia pela qual passa a memória das artes visuais na contemporaneidade. Paradoxalmente, vivemos numa sociedade marcada pelo descartável, mas que, ao mesmo tempo, as pessoas usam cada vez mais a fotografia e o vídeo para "perpetuar" seus momentos, como fazem nas páginas das redes sociais digitais. A professora Silvana Boone fala numa "memória efêmera", ligada às novas tecnologias, sobretudo em tempo de conexão móvel e de redes sociais digitais.

Sobre o assunto, gaúcha pondera: "A ideia de perpetuação do homem existe antes mesmo de ele ter consciência do que isso significava". Ou seja, datam das manifestações primitivas registradas nas paredes das cavernas, passando pela busca da eternidade através das crenças religiosas - a mumificação que tenta perpetuar corpo como invólucro da alma - até as fotografias ou vídeos sem a mínima importância postados no Facebook, completa.

No entanto, ao mesmo tempo em que alguns aplicativos ou softwares recriam uma estética antiga, citando o Instagram como exemplo, essas mesmas imagens postadas nas redes sociais vêm carregadas do caráter efêmero, já que elas devem ser vistas no tempo real, ou quase, analisa.

"O tempo da sua preservação conceitual é o agora, mesmo que ela fique armazenada ali por muito tempo. É um conceito de memória recente, não funciona como um álbum de fotografias ou como o vídeo do nascimento de um filho", diz, justificando que, na sua opinião, é uma "memória efêmera".

Quando o assunto é inovação tecnológica, Tiago Santana desabafa: "Vivemos num mundo de profusão de imagens". Com quase todo aparelho celular dispondo de câmara fotográfica, e em tempo de conexão móvel, os registros da realidade são feitos a todo momento e colocados na rede.

Para o artista visual, Franzé Chaves (Barrinha), o que fica mesmo é o registro, afirmando que da mesma forma que se cria uma pasta para guardar um e-mail que interessa à pessoa, "na arte, ocorre algo muito semelhante", ou seja, deve ser feita sempre uma seleção do que ficará como arte, sendo preservada a sua memória. "Alguns trabalhos efêmeros ficaram como o urinol do Duchamp que ficou eternizado como obra de arte".

Para pesquisadores de arte, o que está acontecendo no momento é uma preocupação com a preservação da memória do cotidiano, fazendo com que as pessoas deixem de viver o dia a dia, aquele momento, para captar a imagem, registrar e mandar para alguém. Na realidade, não é possível preservar tudo, até porque é caro e exige tecnologia sofisticada, que passa por bons aparelhos e materiais para impressão, pigmentação e outras técnicas utilizadas. 

IRACEMA SALES
Acesso em 16/09/12

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